RESUMO
O presente artigo objetiva analisar
os aspectos relativos ao estabelecimento de tribunais internacionais ad hoc, dando enfoque ao Tribunal Penal
Internacional para a antiga Iugoslávia, de modo a viabilizar a compreensão do
processo de jurisdicionalização e humanização do Direito Internacional, bem
como o desenvolvimento da justiça penal internacional, à luz da doutrina dos
poderes implícitos.
Palavras-chave:
Direito Internacional Público. Direito Internacional Penal. Tribunal Penal
Internacional para a antiga Iugoslávia. Mecanismo de solução de controvérsias.
Organização das Nações Unidas. Conselho de Segurança das Nações Unidas.
1.
Introdução
A
criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, no contexto do pós-Segunda
Guerra Mundial, contribuiu em alta magnitude para a formação de novos
paradigmas do Direito Internacional (Menezes,
2010). Nessa perspectiva, entre as fontes desse conjunto normativo, passaram a
figurar não somente princípios gerais de Direito – assentados em valores de
igualdade e justiça –, como também princípios que lhes são próprios, cuja
consagração e sistematização vieram a ocorrer apenas na Carta de São Francisco
(Menezes, 2013), decorrentes das
experiências e do amadurecimento da comunidade internacional em termos de perspectiva
de um marco civilizacional. Restou superado, por conseguinte, o voluntarismo
estatal ilimitado que permeou, por séculos, o Direito Internacional tradicional, legitimando a utilização da força e,
por conseguinte, fomentando o “direito de guerra” (Cançado Trindade, 2006).
As
normas principiológicas, no plano internacional, são responsáveis pela
orientação da produção normativa e da atuação dos Estados nas relações que
estabelecem entre si. Emerge, como noção basilar do contemporâneo Direito
Internacional, a solução pacífica das controvérsias, que se transmuta, de
costume internacional, para princípio positivado, sob a concepção de que, na
existência de qualquer litígio ou conflito de interesses entre os Estados, as
partes devem renunciar à utilização de meios coercitivos, lançando mão, para a
sua resolução, dos mecanismos pacíficos oferecidos, de modo a assegurar a paz,
a segurança e justiça internacionais, sejam eles diplomáticos, políticos ou
jurídicos (Menezes, 2013). Todavia,
dificuldades se instauram quando estabelecidas jurisdições – sobretudo ad hoc – pela ONU no plano internacional,
observado o confronto que se estabelece entre, de um lado, a concepção
soberanista dos Estados conjugada com o princípio do domínio reservado e, de
outro, a interpretação expansiva das atribuições conferidas pela Carta de São
Francisco aos seus órgãos.
Nesse
diapasão, a presente análise objetiva compreender (i) o processo de
estabelecimento do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia como
forma de resolução pacífica de conflitos, (ii) as razões que ensejaram a sua
formação, (iii) a absorção da teoria dos poderes implícitos, pelo Conselho de
Segurança, para a criação de Tribunais Internacionais ad hoc e (iv) sua contribuição para o Direito Internacional Penal.
2.
A jurisdicionalização e humanização do Direito
Internacional
Os
mecanismos jurídicos constituem-se, ao lado dos mecanismos diplomáticos e
políticos, como soluções pacíficas de controvérsias, distinguindo-se dos demais
em função do caráter vinculativo de suas decisões, respaldadas em normas de
Direito Internacional e proferidas por um Tribunal Internacional ou por
árbitros. A atuação dos Tribunais Internacionais, portanto, reside em dirimir as
controvérsias internacionais mediante pronúncia de normas do Direito
Internacional, de forma que sua sentença caracteriza-se como obrigação
normativa, cujo descumprimento redunda em um ilícito internacional.
Ainda
que, ab initio, de forma lenta e
gradual, obstaculizados pela concepção soberanista absoluta dos Estados, os
mecanismos jurisdicionais adquiriram espaço e relevância no âmbito
internacional (Menezes, 2013). A institucionalização
de um tribunal de vocação universal ocorre em 1922, com a fundação da Corte
Permanente de Justiça; entretanto, a jurisdicionalização do Direito
Internacional seria observada apenas posteriormente, com a criação da Corte
Internacional de Justiça, em 1945, no quadro das Nações Unidas. A partir desse
momento, observa-se o advento de diversos organismos internacionais e tribunais
especializados, responsável pela multiplicação das jurisdições internacionais,
dada a insuficiência das já existentes para atender às demandas da
contemporaneidade e a progressiva regionalização do Direito Internacional (Menezes, 2013).
Nesse
cenário, observa-se a salvaguarda do ser humano como sujeito de Direito
Internacional, que, doravante, ocupa a posição central no processo de
desenvolvimento da humanidade e de seu marco civilizacional, em um movimento
designado como a humanização do Direito Internacional (Cançado Trindade, 2006).
3.
O Tribunal Penal Internacional para a antiga
Iugoslávia (TPII), o Conselho de Segurança e a
“teoria dos poderes implícitos”
As
graves violações aos direitos humanos ocorridas no século XX ensejaram o
desenvolvimento de mecanismos institucionais de solução jurisdicional, proporcionando
o assentamento dessa centralidade do ser humano no Direito Internacional.
Outrossim, constata-se, em função desses eventos, a evolução da construção
normativa do Direito Internacional Penal, cujas bases se estendem da formação
do Tribunal de Nuremberg, em 1945, até o estabelecimento do Tribunal Penal
Internacional, em 1998, perpassando pela criação de Tribunais Internacionais ad hoc pelo Conselho de Segurança, para
Ruanda e para a antiga Iugoslávia (TPII) – objeto da análise em testilha.
Em
aspectos fáticos, o conflito na Iugoslávia irrompeu em 1991, como efeito da
declaração de independência da Eslovênia, um dos seis países constituintes da
República Socialista Federativa da Iugoslávia. No ano seguinte, após o boicote,
promovido pelos sérvios bósnios, de um referendo em que 60% da população
votaram afirmativamente à proposta de independência, as hostilidades atingiram seu
ápice na Bósnia-Herzegovina. Um mês mais tarde, os sérvios bósnios, assistidos
pelo Exército Popular Iugoslavo, passaram a reclamar diversos territórios para
si; posteriormente, os sérvios croatas também se insurgiram perante o governo
bósnio, resultando em um conflito tripartite.
É
nesse contexto que se verifica a constituição do Tribunal Penal Internacional
para a antiga Iugoslávia (TPII): após reuniões de comissões de especialistas e
juristas e conferências sobre segurança e cooperação na Europa, o Secretário-Geral
da ONU, munido de diversos relatórios, reportou a situação ao Conselho de
Segurança, que, após exame, declarou a incidência do artigo 39, do Capítulo
VII, da Carta das Nações Unidas, ao identificar, na situação da Iugoslávia, uma
concreta ameaça à paz e à segurança enquanto guerra internacional (Pocar, 2008). In verbis, dispõe o artigo 39 que
“[o] Conselho de Segurança determinará a
existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão, e fará
recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas de acordo com os
artigos 41 e 42, a fim de manter ou restabelecer a paz e a segurança
internacionais.”.
Desde
o século passado, em virtude das grandes crises humanitárias, o Conselho de
Segurança tem aperfeiçoado seus mecanismos de atuação – e.g., mediante a criação de tribunais ad hoc – sob o discurso de primazia da resolução de controvérsias
de efetiva e elevada periculosidade à paz e segurança internacionais e, por
consectário, de supremacia da proteção dos direitos humanos, que se encontram
em constante processo de expansão. Esse procedimento se estabelece em
consonância com o que se convencionou designar como a teoria dos poderes implícitos do Conselho de Segurança, produto de
uma interpretação flexível (Seur,
1995) das disposições da Carta de São Francisco e do princípio da efetividade, por
meio da qual se propugna a existência de determinadas competências subsidiárias
do órgão, que, embora não atribuídas explicitamente, seriam inerentes às
atividades por ele desempenhadas ou, ainda, dedutíveis dos poderes expressamente
conferidos, apresentando-se como respaldo jurídico, por exemplo, da criação do
TPII (Sarooshi, 1998, p. 142). Nesse
quesito, a discussão envolve os limites axiológicos em torno dos poderes
implícitos: deve haver uma correlação clara com os poderes expressos e se
circunscrever ao que deveras é necessário
para o exercício das atribuições ostensivas, complementando-as (Skubiszewski, 1989). No entanto, tal
tarefa afigura-se dificultosa de averiguar na prática do Direito Internacional
e impõe cautela ao Conselho, para que não sejam constatadas arbitrariedades na
adoção de medidas atinentes ao sistema global de proteção dos direitos humanos,
sobretudo em decorrência da inobservância do princípio da igualdade entre os
Estados em sua composição, afastando-se, pois, do exercício despótico, parcial
e politizado da estrutura orgânica na condução das ações humanitárias.
Formalmente
estabelecida em 1993 pela Resolução 827 do Conselho de Segurança, após o
reconhecimento, pelo mesmo órgão, da necessidade da implantação de um Tribunal
Internacional para julgamento das “pessoas
responsáveis por sérias violações ao Direito Humanitário Internacional
cometidas no território da antiga Iugoslávia desde 1991” em sua Resolução
808 (Nações Unidas, 1993), a Corte
notabilizou-se como instrumento jurídico de pressão da comunidade internacional
sobre os militares das repúblicas da antiga Iugoslávia.
Nesse
sentido, a jurisdição do Tribunal, segundo seu Estatuto, prima sobre os
ordenamentos nacionais e recai sobre as atrocidades cometidas no contexto das
Guerras Iugoslavas (art. 1), sobretudo na Croácia e na Bósnia-Herzegovina, sejam
condutas ofensivas às disposições da Convenção de Genebra de 1949 (art. 2),
sejam violações como crimes de guerra (art. 3), genocídio (art. 4) e crimes
contra a humanidade (art. 5), praticados a partir de 1991, independentemente do
status oficial de que gozava o
agente, isto é, ainda que se referissem a crimes cometidos por chefes e funcionários
de Estado ou de governo (Ciechanski,
1998). Os dispositivos mencionados englobam delitos aterradores, como a homicídio
de milhares de civis, torturas, abusos sexuais em campos de detenção, experimentos
com humanos, bombardeios, redução à escravidão, deportação, exterminação, entre
outros variados comportamentos, que ensejaram a ação do Conselho de Segurança,
em conformidade com o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas.
O
último julgamento do Tribunal ocorreu em 29 de novembro de 2017, no caso Prlić et al., em que se analisava a
apelação de seis militares e políticos bósnio-croatas, condenados em 2013 por
assassinato, expulsão e perseguição de muçulmanos no contexto da Guerra da
Bósnia. A sessão foi marcada pela ingestão de cianeto por parte de Slobodan
Praljak, general do Exército Croata entre 1992 e 1995, ao ser pronunciada a
manutenção de sua sentença de 20 anos de prisão por expulsão de muçulmanos.
Formalmente,
o Tribunal encerrou-se em 31 de dezembro de 2017, após o indiciamento de 161
indivíduos, dos quais 90 foram sentenciados, 19 absolvidos, 13 encaminhados a
uma jurisdição nacional, 20 tiveram suas acusações retiradas, 17 foram declarados
falecidos e 2 reconduzidos ao Mecanismo para os Tribunais Penais Internacionais.
4.
Conclusão
Desta análise, nota-se
que o estabelecimento do Tribunal ad hoc em
tela foi fator relevante para o desenvolvimento do Direito Internacional Penal,
definindo as bases sobre as quais ele se erigiria, até a instalação do Tribunal
Penal Internacional, de caráter permanente.
A natureza
jurídico-sociológica desempenhada pelo TPII assumiu elevada relevância no plano
internacional, alterando o panorama do Direito Humanitário Internacional. Na
perspectiva social, viabilizou a individualização da responsabilidade dos
delitos cometidos, com a demonstração de que indivíduos de alto escalão não estão
imunes à jurisdição do Direito Internacional, repelindo a rotulação da
comunidade por tais fatos ao desconstruir a falsa percepção de que haveria uma
responsabilidade coletiva pelas atrocidades, ao passo que incutiu, nas vítimas,
algum sentimento de justiça.
No viés jurídico, o
Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia assentou os aspectos mais
centrais da justiça penal internacional, tratando-se de instituto que corrobora
a posição de seres humanos enquanto sujeitos de Direito Internacional e
propicia, no âmbito global, um sistema de responsabilização de indivíduos diverso
daquele que enseja a responsabilidade de Estados por crimes internacionais;
assim, a imputabilidade pelas práticas delitivas de certo agente de um país não
incidirá sobre o Estado, mas tão somente sobre o autor da conduta.
Em remate, a atuação
do Conselho de Segurança na instauração do Tribunal demonstrou a superação das
alegações de competência exclusiva dos Estados – ou “domínio reservado” –, fundadas
no princípio da soberania, permitindo a expansão da proteção dos direitos
humanos e redundando na formação de sistema internacional de justiça penal, na
medida em que comina sanções às práticas perpetradoras de violações do Direito
Humanitário, ainda que em controvérsia doméstica, enquanto crimes
internacionais.
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