ACÓRDÃO – Por unanimidade, o recurso teve seu
provimento negado, nos termos do voto de seu relator, Min. Cezar Peluso.
RELATÓRIO – O Banco Bradesco S/A interpôs RE
contra acórdão do TJ/SP que dava procedência à ação de deposita, com base em
alienação fiduciária em garantia, sem cominar prisão civil ao devedor
fiduciante por considerá-la inconstitucional.
Para a
recorrente, trata-se de transgressão do art. 5º, LXVII, da Constituição
Federal.
VOTO – Min. Gilmar Mendes – Após ter
sido negado o provimento no voto do relator, decide analisar o tema em questão.
1) Da prisão
civil do depositário infiel em face dos tratados internacionais de direitos
humanos. Nota-se que as leis mais modernas vedam a prisão civil em virtude
de inadimplemento de obrigações contratuais, com exceção ao caso do alimentante,
assim como disposto no art. 7º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
ao qual o Brasil aderiu. Daí nasce o debate acerca da revogação da legislação
infraconstitucional por parte dos diplomas internacionais e um exame mais
pormenorizado da relação hierárquico-normativa entre os tratados e a
Constituição.
A
discussão doutrinária e jurisprudencial sobre o status normativo de tratados e convenções internacionais de
direitos humanos se divide em quatro correntes, que afirmam haver, nessas
normas:
I – Status
supraconstitucional: reconhece-se, por exemplo, que as normas
constitucionais não poderiam revogar as normas de tratados internacionais, bem
como emendas constitucionais não poderiam causar a supressão de normativa
internacional de direitos humanos. É, entretanto, pouco adequável a sistemas
jurídicos que apregoam a supremacia material e formal da Constituição, como o
Brasil, levando a impossibilidade de controle de constitucionalidade das normas
advindas de diplomas internacionais. Segundo o STF, a Constituição
implicitamente sobrepuja-as ao submetê-las à aprovação e promulgação pelo
processo legislativo que por ela é determinado, admitindo, portanto, controle
de constitucionalidade. Ademais, tratados e convenções são celebrados em
consonância com os procedimentos formais ditados pela Lei Magna, e com respeito
à sua materialidade em direitos e garantias fundamentais.
Em virtude
das repercussões que um controle de constitucionalidade (a posteriori) de um
ato normativo internacional pode ter no âmbito político, é comum que os
Tribunais Constitucionais evitem fazê-lo. Faz-se necessário, por tanto, um
controle a priori, que influencie
acerca da ratificação do tratado, impedindo ou desaconselhando-o. No Brasil,
esse método é exequível através de ADI ou ADC do Decreto Legislativo que aprova
o tratado.
II – Status
constitucional: para essa vertente, haveria, no art. 5º,
SS2º/CF, uma cláusula de recepção de outros direitos previstos em tratados de
direitos humanos – demais tratados seriam apenas de estatura
infraconstitucional – em que o Brasil fosse signatário, incorporando-as à
Constituição e sendo assegurada, ainda, sua aplicabilidade imediata, nacional e
internacionalmente, do momento de sua ratificação. Havendo conflito entre norma
do diploma internacional e a Constituição, aplicar-se-ia a mais favorável ao
titular do direito.
Com a
Emenda Constitucional 45/2004, a posição se tornou esvaziada, visto que tratados
anteriores a ela, já ratificados, não receberiam status constitucional se não
aprovadas em processo legislativo. Entretanto, a referida emenda ainda
privilegiou os tratados de direitos humanos em virtude de seu caráter especial,
criando uma solução para o futuro: se aprovados por quórum especial, recebem status
constitucional.
III – Status
de legislação ordinária: com a Reforma do Judiciário, essa tese se
tornou praticamente indefensável, ao apregoar a equivalência entre tratados de
direitos humanos e leis ordinárias, posto que não seriam dotados de
legitimidade para revogar ou alterar o texto constitucional. Havia,
anteriormente, na jurisprudência, a concepção de que ato normativo
internacional era modificável por lei nacional posterior, e aplicava-se à
antinomia de regras do mesmo grau a regra geral Lex posteriori derrogat legi priori. O Pacto de San José da Costa
Rica, sendo norma geral, não seria capaz de revogar lei ordinária de caráter
especial, como o Decreto-Lei 911/69, que permite a prisão civil do
devedor-fiduciante.
Em virtude
da condição de ‘Estado Constitucional Cooperativo’ – se apresentando para os
demais Estados como referência na comunidade e dando enfoque especial no papel
dos direitos humanos e fundamentais – que hoje nos encontramos, e considerando
disposições constitucionais que remetem a uma abertura ao direito
constitucional (art. 4º, SS único, visando à integração em organismos
supranacionais; art. 5º, SS2º; art. 5º, SS3º e art. 5º, SS4º), é necessário
repensar a jurisprudência do STF, seguindo a tendência do constitucionalismo
moderno de aproximação entre os Direitos Internacional e Constitucional e
superar o anacronismo da interpretação da legalidade ordinária dos tratados
sobre direitos humanos.
IV – Status
supralegal: a tese é de que os tratados de direitos
humanos constariam como infraconstitucionais, porém, em virtude de seu caráter
especial em relação aos demais diplomas internacionais, seriam caracterizados
como supralegais, não lhes permitindo confronto com o texto constitucional,
porém ocupando espaço privilegiado no ordenamento – vê-los como leis ordinárias
retirar-lhes-ia o valor distinto de proteção aos direitos humanos, esvaziaria
“muito do seu sentido útil à inovação”. É ressaltada, portanto, a necessidade
de maior efetividade à proteção dos direitos humanos e alteração da visão
acerca dos tratados internacionais em nosso ordenamento, adequando-se à
proteção do ser humano, tendência no âmbito supranacional.
Estando claro
o caráter especial dos diplomas internacionais em questão, uma vez absorvidos
pela ordem, admitem uma paralisação dos efeitos jurídicos de legislação
incompatível com suas normas. Desse modo, com a adesão ao Pacto, a previsão
constitucional de prisão civil do depositário infiel não foi revogada, porém perdeu
a capacidade de aplicação em virtude do
efeito paralisante do tratado. A mesma consequência, com base na estatura
supralegal, se dá com normas infraconstitucionais supervenientes e
conflitantes. Há ainda a possibilidade de submeter tratados internacionais já
ratificados ao procedimento legislativo previsto no art. 5º, SS3º, para
conferir-lhes o status de emenda.
2) Da prisão civil do devedor-fiduciante em
face do princípio da proporcionalidade.
A possibilidade
de prisão civil já afrontava a ordem constitucional antes e após a Constituição
de 1988, em virtude da violação ao princípio da proporcionalidade.
2.1.) A violação ao princípio da
proporcionalidade como proibição de excesso.
A alienação fiduciária em garantia
“transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel
alienada”, independente da tradição, de modo que o alienante se torna
depositário inclusive para as responsabilizações civis e penais (ou seja,
inadimplente = “depositário infiel”), segundo o Decreto-Lei 911/69. Para
Orlando Gomes, a alienação em questão é negócio jurídico em que o devedor
transmite ao credor certa propriedade, mantendo-lhe a posse, para garantir o
pagamento da dívida, com a condição resolutiva de saldá-la. Uma vez liquidado o
débito, é automática o retorno ao domínio do devedor. O instituto permite às
instituições financeiras uma garantia especial, com diversos meios processuais,
para satisfazer o crédito, bem como, ao consumidor, melhores condições para que
adquira bens duráveis.
Havendo
inadimplemento do devedor, o fiduciário pode, segundo o Decreto-Lei: tendo o
bem sido entregue pelo fiduciante, vender a terceiros e aplicar tal valor na
satisfação de seu crédito; ajuizar ação de busca e apreensão para obter a posse
direta do bem e, caso o bem não seja encontrado, convertê-la em ação de
depósito ou ainda entrar com ação de execução. Além disso, há a possibilidade
de recorrer a outros meios, como a reivindicação ou reintegração de posse,
cabendo ao credor escolher o modo mais desejável de satisfação.
Disponíveis
outros meios processuais-executórios, para o credor-fiduciário, de garantir o
crédito, o que explicita que o recurso da prisão civil, à luz da
proporcionalidade (enquanto proibição de excesso), examinando-se com base nos critérios
de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, não seria
aprovado. A sua violação à proporcionalidade, e consequente
inconstitucionalidade, decorre da constatação inequívoca da existência de
outras medidas menos lesivas, e é constatada, tipicamente, pela doutrina,
quando observável a contraditoriedade, incongruência, irrazoabilidade ou
inadequação entre meios e fins. Assim, na restrição de determinados direitos, a
análise não parte apenas da admissibilidade constitucional de uma restrição
fixada (reserva legal), mas também
da compatibilidade dessas restrições estabelecidas com o princípio da
proporcionalidade (reserva legal
proporcional).
É
pressuposta a legitimidade dos meios e fins ansiados, a adequação
(idoneidade) dos meios a necessidade (não haver outro meio menos oneroso
e igualmente idôneo) de sua utilização. É preciso ainda a ponderação e o
equilíbrio entre o significado da intervenção para o atingido e os resultados
objetivados pelo legislador (proporcionalidade em sentido estrito).
Visto que há outros meios processuais, a prisão civil é evidentemente desnecessária, e como a restrição à
liberdade individual não se justifica pela realização do direito de crédito, a
ponderação leva a concluir que também é violada a proporcionalidade em sentido estrito, considerando ainda o fato de
que não há recomposição patrimonial do fiduciante.
2.2) A violação ao princípio da reserva legal
proporcional.
O
Decreto-Lei 911/69, ao equiparar o devedor-fiduciante ao depositário em efeitos
civis e penais, criaria uma atipicidade na figura do depósito, extrapolando o
conteúdo semântico de “depositário infiel” presente no art. 5º, LXVII, da
Constituição, e desfigurando-o na ordem constitucional, o que resulta na
violação ao princípio da reserva legal
proporcional. Embora a CF/88 não tenha previsto que o direito seja
conformado ou restrito na forma da lei – se trata de direito fundamental sem reserva legal expressa –, não é proibido ao
legislador ordinário que o faça, até para que seja possível conter abusos de
seus titulares, bem como na possibilidade de colisão (justificando a
intervenção nos direitos alheios ou em princípios de hierarquia constitucional)
– baseado na cláusula de reserva legal subsidiária, art. 5º, II/CF; entretanto,
é vedado que se extrapole os limites do âmbito da proteção normativo.
Para a
análise da legitimidade constitucional de conformação ou restrição de atividade
legiferante é necessário determinar o âmbito de proteção de determinado direito,
o que em muitos casos é dependente de uma interpretação sistemática. É exigida
a observação dos bens jurídicos protegidos e o alcance da proteção, bem como a
verificação das restrições constantes na Constituição e a identificação de
reservas legais restritivas. P.68
A norma
foi editada durante o regime ditatorial instituído pelo AI 5/1968 e assinada
pelos militares que governavam o Brasil à época. Para o Ministro, hoje, na
percepção corrente de Estado constitucional e proteção de direitos e garantias
fundamentais de todos os cidadãos, tal ato normativo não seria aprovado pelo
Congresso Nacional.
A evolução
jurisprudencial expressa na mutação constitucional não decorre em julgar
equivocadas as decisões anteriores, mas apenas acentua a adequação do sentido
do texto constitucional ao contexto social, do que demonstra a prontidão para a
atualização jurisprudencial. Nega
provimento ao recurso.
VOTO – Min. Celso de Mello – Estão
pautadas no julgamento a controvérsia jurídica da prisão civil do depositário
infiel e a constitucionalidade da equiparação entre devedor fiduciante e
depositário por via legal.
O
debate acerca da prisão civil é de relevante reflexão acerca do processo de internacionalização dos
direitos humanos e as relações entre o
direito constitucional e o internacional dos direitos humanos. À luz dos
diplomas internacionais, a sanção (e a tendência de sua extinção na
modernidade) alude a uma prática abolida já com a Lex Poetelia Papiria. Ademais, consta na própria Constituição a
vedação à prisão por dívida, com exceções apenas para os casos do alimentante
inadimplente e do depositário infiel. A Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, por sua vez, reitera a proibição, ressalvando apenas a primeira
exceção. Aderida pelo Brasil em 1992 e incorporada pelo Decreto 678/1992, o
Pacto visa a “um regime de liberdade pessoal e justiça social”. O Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, firmado pela Organização das
Nações Unidas (ONU), dotado de projeção global quanto aos direitos essenciais
da pessoa humana, firma o entendimento de que não haverá prisão por inadimplemento
de obrigação contratual.
Por
consequência do quadro normativo apresentado, cabe ao STF extrair do mesmo a
maior eficácia que viabilize aos indivíduos a proteção aos direitos
fundamentais, sob pena de nulificar a liberdade, a tolerância e o respeito à
alteridade humana; incumbe ao Poder Público, principalmente pelo Judiciário, o
respeito e promoção da efetivação dos direitos constitucionais e
internacionais, viabilizando um constitucionalismo democrático que se abre à
internacionalização dos direitos básicos humanos. Conhecendo os regimes
totalitários e os efeitos desse fenômeno na ordem jurídica, a Constituição,
promulgada pela Assembleia Nacional Constituinte, preceitua como princípios
fundamentais do ordenamento, em seus artigos, valores de proteção ao ser
humano. O fato é de que tratados e convenções internacionais são de relevante
força na afirmação, consolidação e expansão dos direitos básicos da pessoa
humana, o que inclui, por sua importância, o
direito de não sofrer prisão por dívida – progressivamente abolido no
direito comparado –, ressalvadas as exceções. Inclusive, essas exceções à
vedação são afastamentos pontuais dessa medida de coerção, permitindo ao
legislador meio instrumental quando do “inadimplemento voluntário e
injustificável de obrigação alimentar e infidelidade depositária”, sendo a
possibilidade de prisão civil de eficácia limitada e de responsabilidade do
legislador a cominação da prisão civil, seus requisitos, prazo de duração e
aplicação. É importante assinalar que, segundo julgados anteriores do STF, as
exceções previstas em norma constitucional não contêm vinculação do legislador: são permissões, não obrigações para a
regulação da utilização da prisão civil: portanto, poderia disciplinar ambas as
hipóteses, uma ou nenhuma delas.
Dada
a supralegalidade dos tratados internacionais, a controvérsia jurídica
resolver-se-ia no exame entre fontes internas e internacionais, de modo que as
convenções internacionais de direitos humanos primam sobre a legislação
ordinária assim que constatada a antinomia. Desse modo, a Convenção Americana
reduziria a prisão civil apenas a uma hipótese, de alimentante inadimplente. Tomada
ainda a compreensão da função tutelar dos tratados internacionais acerca de
matéria de liberdades públicas presentes nesses acordos, é preciso
reconhecer-lhes o efeito inibitório de legislação infraconstitucional que com
eles incompatibilizarem-se. Há o reconhecimento ainda de expressivas lições
doutrinárias em relação à equiparação dos tratados internacionais que versam
sobre direitos humanos às normas constitucionais, além de denotar que há pacos
celebrados antes da Reforma do Judiciário, como o Pacto de San José da Costa
Rica, que possuem caráter materialmente constitucional. O Ministro opta por
reconhecer a natureza constitucional, evidenciando haver três casos:
I)
Tratados de direitos humanos incorporados à
ordem interna antes da promulgação da CF/1988, tendo índole constitucional por terem sido formalmente recepcionadas.
II)
Tratados que virão a ser celebrados após a
EC 45/2044, que, para serem equiparadas às normas de natureza constitucional,
submeter-se-ão ao procedimento previsto no art. 5º, SS3º.
III)
Tratados celebrados durante o ínterim entre
a promulgação da CF/1988 e a EC 45/2004, assumindo caráter materialmente constitucional,
transmitida em virtude de sua inclusão no bloco de constitucionalidade
(“somatória do que é adicionado à Constituição escrita, em função dos valores e
princípios nela consagrados”).
Deve
haver primazia dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos sobre
o direito interno brasileiro, valorizando-se o sistema de proteção aos direitos
humanos ao atribuir-lhe caráter hierarquicamente superior ao de legislação
ordinária, conferindo supremacia e procedência ao ordenamento doméstico.
É
ressaltado que há possibilidade de alteração das exceções constitucionais à
vedação da prisão civil por dívida, tanto por atividade legiferante ordinária,
quanto por formulações advindas de convenções ou tratadas internacionais, bem
como por interpretações da Constituição e do ordenamento feitas por juízes e
Tribunais. A interpretação, portanto, é de papel fundamental, posto que não só
revela, mas também adéqua o sentido de regras normativas ao contexto social,
econômico e político da contemporaneidade, e sua legitimidade está vinculada à
sua capacidade de fiel reflexão do “espírito do tempo”.
Ademais,
pode ser reconhecida a inconstitucionalidade de tratados internacionais em
geral, que reduzam ou suprimam direitos e garantias individuais já preconizados
pela Carta Política, visto que, enquanto estatuto fundamental da República, a
ela se submetem leis e tratados. E quando da antinomia entre tratados
internacionais (que não versem sobre direitos humanos) e a Constituição,
prevalecerá a última, por consequência da precedência hierárquica do texto
constitucional.
A
reforma constitucional trazida pela EC 45/2004 permitiu a reflexão acerca da
estatura constitucional de tratados internacionais de direitos humanos.
As
razões expostas levam à conclusão de que o Decreto-Lei 911/69 não foi
recepcionado pelo ordenamento constitucional, havendo clara incompatibilidade
material superveniente entre o ato normativo e a Constituição vigente. Cabe ao
credor fiduciário a ação de depósito, porém sem a cominação de prisão civil do
fiduciante vencido. Nega-se provimento
ao recurso.
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