domingo, 26 de abril de 2020

RE 466.343, Rel. Min. Cezar Peluso



ACÓRDÃO – Por unanimidade, o recurso teve seu provimento negado, nos termos do voto de seu relator, Min. Cezar Peluso.

RELATÓRIO – O Banco Bradesco S/A interpôs RE contra acórdão do TJ/SP que dava procedência à ação de deposita, com base em alienação fiduciária em garantia, sem cominar prisão civil ao devedor fiduciante por considerá-la inconstitucional.

Para a recorrente, trata-se de transgressão do art. 5º, LXVII, da Constituição Federal.

VOTO – Min. Gilmar Mendes – Após ter sido negado o provimento no voto do relator, decide analisar o tema em questão.

1) Da prisão civil do depositário infiel em face dos tratados internacionais de direitos humanos. Nota-se que as leis mais modernas vedam a prisão civil em virtude de inadimplemento de obrigações contratuais, com exceção ao caso do alimentante, assim como disposto no art. 7º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ao qual o Brasil aderiu. Daí nasce o debate acerca da revogação da legislação infraconstitucional por parte dos diplomas internacionais e um exame mais pormenorizado da relação hierárquico-normativa entre os tratados e a Constituição.

A discussão doutrinária e jurisprudencial sobre o status normativo de tratados e convenções internacionais de direitos humanos se divide em quatro correntes, que afirmam haver, nessas normas:

I – Status supraconstitucional: reconhece-se, por exemplo, que as normas constitucionais não poderiam revogar as normas de tratados internacionais, bem como emendas constitucionais não poderiam causar a supressão de normativa internacional de direitos humanos. É, entretanto, pouco adequável a sistemas jurídicos que apregoam a supremacia material e formal da Constituição, como o Brasil, levando a impossibilidade de controle de constitucionalidade das normas advindas de diplomas internacionais. Segundo o STF, a Constituição implicitamente sobrepuja-as ao submetê-las à aprovação e promulgação pelo processo legislativo que por ela é determinado, admitindo, portanto, controle de constitucionalidade. Ademais, tratados e convenções são celebrados em consonância com os procedimentos formais ditados pela Lei Magna, e com respeito à sua materialidade em direitos e garantias fundamentais.

Em virtude das repercussões que um controle de constitucionalidade (a posteriori) de um ato normativo internacional pode ter no âmbito político, é comum que os Tribunais Constitucionais evitem fazê-lo. Faz-se necessário, por tanto, um controle a priori, que influencie acerca da ratificação do tratado, impedindo ou desaconselhando-o. No Brasil, esse método é exequível através de ADI ou ADC do Decreto Legislativo que aprova o tratado.

II – Status constitucional: para essa vertente, haveria, no art. 5º, SS2º/CF, uma cláusula de recepção de outros direitos previstos em tratados de direitos humanos – demais tratados seriam apenas de estatura infraconstitucional – em que o Brasil fosse signatário, incorporando-as à Constituição e sendo assegurada, ainda, sua aplicabilidade imediata, nacional e internacionalmente, do momento de sua ratificação. Havendo conflito entre norma do diploma internacional e a Constituição, aplicar-se-ia a mais favorável ao titular do direito.

Com a Emenda Constitucional 45/2004, a posição se tornou esvaziada, visto que tratados anteriores a ela, já ratificados, não receberiam status constitucional se não aprovadas em processo legislativo. Entretanto, a referida emenda ainda privilegiou os tratados de direitos humanos em virtude de seu caráter especial, criando uma solução para o futuro: se aprovados por quórum especial, recebem status constitucional.

III – Status de legislação ordinária: com a Reforma do Judiciário, essa tese se tornou praticamente indefensável, ao apregoar a equivalência entre tratados de direitos humanos e leis ordinárias, posto que não seriam dotados de legitimidade para revogar ou alterar o texto constitucional. Havia, anteriormente, na jurisprudência, a concepção de que ato normativo internacional era modificável por lei nacional posterior, e aplicava-se à antinomia de regras do mesmo grau a regra geral Lex posteriori derrogat legi priori. O Pacto de San José da Costa Rica, sendo norma geral, não seria capaz de revogar lei ordinária de caráter especial, como o Decreto-Lei 911/69, que permite a prisão civil do devedor-fiduciante.

Em virtude da condição de ‘Estado Constitucional Cooperativo’ – se apresentando para os demais Estados como referência na comunidade e dando enfoque especial no papel dos direitos humanos e fundamentais – que hoje nos encontramos, e considerando disposições constitucionais que remetem a uma abertura ao direito constitucional (art. 4º, SS único, visando à integração em organismos supranacionais; art. 5º, SS2º; art. 5º, SS3º e art. 5º, SS4º), é necessário repensar a jurisprudência do STF, seguindo a tendência do constitucionalismo moderno de aproximação entre os Direitos Internacional e Constitucional e superar o anacronismo da interpretação da legalidade ordinária dos tratados sobre direitos humanos.

IV – Status supralegal: a tese é de que os tratados de direitos humanos constariam como infraconstitucionais, porém, em virtude de seu caráter especial em relação aos demais diplomas internacionais, seriam caracterizados como supralegais, não lhes permitindo confronto com o texto constitucional, porém ocupando espaço privilegiado no ordenamento – vê-los como leis ordinárias retirar-lhes-ia o valor distinto de proteção aos direitos humanos, esvaziaria “muito do seu sentido útil à inovação”. É ressaltada, portanto, a necessidade de maior efetividade à proteção dos direitos humanos e alteração da visão acerca dos tratados internacionais em nosso ordenamento, adequando-se à proteção do ser humano, tendência no âmbito supranacional.

Estando claro o caráter especial dos diplomas internacionais em questão, uma vez absorvidos pela ordem, admitem uma paralisação dos efeitos jurídicos de legislação incompatível com suas normas. Desse modo, com a adesão ao Pacto, a previsão constitucional de prisão civil do depositário infiel não foi revogada, porém perdeu a capacidade de aplicação em virtude do efeito paralisante do tratado. A mesma consequência, com base na estatura supralegal, se dá com normas infraconstitucionais supervenientes e conflitantes. Há ainda a possibilidade de submeter tratados internacionais já ratificados ao procedimento legislativo previsto no art. 5º, SS3º, para conferir-lhes o status de emenda.

2) Da prisão civil do devedor-fiduciante em face do princípio da proporcionalidade.

A possibilidade de prisão civil já afrontava a ordem constitucional antes e após a Constituição de 1988, em virtude da violação ao princípio da proporcionalidade.

2.1.) A violação ao princípio da proporcionalidade como proibição de excesso.

A alienação fiduciária em garantia “transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada”, independente da tradição, de modo que o alienante se torna depositário inclusive para as responsabilizações civis e penais (ou seja, inadimplente = “depositário infiel”), segundo o Decreto-Lei 911/69. Para Orlando Gomes, a alienação em questão é negócio jurídico em que o devedor transmite ao credor certa propriedade, mantendo-lhe a posse, para garantir o pagamento da dívida, com a condição resolutiva de saldá-la. Uma vez liquidado o débito, é automática o retorno ao domínio do devedor. O instituto permite às instituições financeiras uma garantia especial, com diversos meios processuais, para satisfazer o crédito, bem como, ao consumidor, melhores condições para que adquira bens duráveis.

Havendo inadimplemento do devedor, o fiduciário pode, segundo o Decreto-Lei: tendo o bem sido entregue pelo fiduciante, vender a terceiros e aplicar tal valor na satisfação de seu crédito; ajuizar ação de busca e apreensão para obter a posse direta do bem e, caso o bem não seja encontrado, convertê-la em ação de depósito ou ainda entrar com ação de execução. Além disso, há a possibilidade de recorrer a outros meios, como a reivindicação ou reintegração de posse, cabendo ao credor escolher o modo mais desejável de satisfação.

Disponíveis outros meios processuais-executórios, para o credor-fiduciário, de garantir o crédito, o que explicita que o recurso da prisão civil, à luz da proporcionalidade (enquanto proibição de excesso), examinando-se com base nos critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, não seria aprovado. A sua violação à proporcionalidade, e consequente inconstitucionalidade, decorre da constatação inequívoca da existência de outras medidas menos lesivas, e é constatada, tipicamente, pela doutrina, quando observável a contraditoriedade, incongruência, irrazoabilidade ou inadequação entre meios e fins. Assim, na restrição de determinados direitos, a análise não parte apenas da admissibilidade constitucional de uma restrição fixada (reserva legal), mas também da compatibilidade dessas restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade (reserva legal proporcional).

É pressuposta a legitimidade dos meios e fins ansiados, a adequação (idoneidade) dos meios a necessidade (não haver outro meio menos oneroso e igualmente idôneo) de sua utilização. É preciso ainda a ponderação e o equilíbrio entre o significado da intervenção para o atingido e os resultados objetivados pelo legislador (proporcionalidade em sentido estrito). Visto que há outros meios processuais, a prisão civil é evidentemente desnecessária, e como a restrição à liberdade individual não se justifica pela realização do direito de crédito, a ponderação leva a concluir que também é violada a proporcionalidade em sentido estrito, considerando ainda o fato de que não há recomposição patrimonial do fiduciante.  

2.2) A violação ao princípio da reserva legal proporcional.

O Decreto-Lei 911/69, ao equiparar o devedor-fiduciante ao depositário em efeitos civis e penais, criaria uma atipicidade na figura do depósito, extrapolando o conteúdo semântico de “depositário infiel” presente no art. 5º, LXVII, da Constituição, e desfigurando-o na ordem constitucional, o que resulta na violação ao princípio da reserva legal proporcional. Embora a CF/88 não tenha previsto que o direito seja conformado ou restrito na forma da lei – se trata de direito fundamental sem reserva legal expressa –, não é proibido ao legislador ordinário que o faça, até para que seja possível conter abusos de seus titulares, bem como na possibilidade de colisão (justificando a intervenção nos direitos alheios ou em princípios de hierarquia constitucional) – baseado na cláusula de reserva legal subsidiária, art. 5º, II/CF; entretanto, é vedado que se extrapole os limites do âmbito da proteção normativo.

Para a análise da legitimidade constitucional de conformação ou restrição de atividade legiferante é necessário determinar o âmbito de proteção de determinado direito, o que em muitos casos é dependente de uma interpretação sistemática. É exigida a observação dos bens jurídicos protegidos e o alcance da proteção, bem como a verificação das restrições constantes na Constituição e a identificação de reservas legais restritivas. P.68

A norma foi editada durante o regime ditatorial instituído pelo AI 5/1968 e assinada pelos militares que governavam o Brasil à época. Para o Ministro, hoje, na percepção corrente de Estado constitucional e proteção de direitos e garantias fundamentais de todos os cidadãos, tal ato normativo não seria aprovado pelo Congresso Nacional.

A evolução jurisprudencial expressa na mutação constitucional não decorre em julgar equivocadas as decisões anteriores, mas apenas acentua a adequação do sentido do texto constitucional ao contexto social, do que demonstra a prontidão para a atualização jurisprudencial. Nega provimento ao recurso.


VOTO – Min. Celso de Mello – Estão pautadas no julgamento a controvérsia jurídica da prisão civil do depositário infiel e a constitucionalidade da equiparação entre devedor fiduciante e depositário por via legal.

O debate acerca da prisão civil é de relevante reflexão acerca do processo de internacionalização dos direitos humanos e as relações entre o direito constitucional e o internacional dos direitos humanos. À luz dos diplomas internacionais, a sanção (e a tendência de sua extinção na modernidade) alude a uma prática abolida já com a Lex Poetelia Papiria. Ademais, consta na própria Constituição a vedação à prisão por dívida, com exceções apenas para os casos do alimentante inadimplente e do depositário infiel. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, por sua vez, reitera a proibição, ressalvando apenas a primeira exceção. Aderida pelo Brasil em 1992 e incorporada pelo Decreto 678/1992, o Pacto visa a “um regime de liberdade pessoal e justiça social”. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, firmado pela Organização das Nações Unidas (ONU), dotado de projeção global quanto aos direitos essenciais da pessoa humana, firma o entendimento de que não haverá prisão por inadimplemento de obrigação contratual.

Por consequência do quadro normativo apresentado, cabe ao STF extrair do mesmo a maior eficácia que viabilize aos indivíduos a proteção aos direitos fundamentais, sob pena de nulificar a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana; incumbe ao Poder Público, principalmente pelo Judiciário, o respeito e promoção da efetivação dos direitos constitucionais e internacionais, viabilizando um constitucionalismo democrático que se abre à internacionalização dos direitos básicos humanos. Conhecendo os regimes totalitários e os efeitos desse fenômeno na ordem jurídica, a Constituição, promulgada pela Assembleia Nacional Constituinte, preceitua como princípios fundamentais do ordenamento, em seus artigos, valores de proteção ao ser humano. O fato é de que tratados e convenções internacionais são de relevante força na afirmação, consolidação e expansão dos direitos básicos da pessoa humana, o que inclui, por sua importância, o direito de não sofrer prisão por dívida – progressivamente abolido no direito comparado –, ressalvadas as exceções. Inclusive, essas exceções à vedação são afastamentos pontuais dessa medida de coerção, permitindo ao legislador meio instrumental quando do “inadimplemento voluntário e injustificável de obrigação alimentar e infidelidade depositária”, sendo a possibilidade de prisão civil de eficácia limitada e de responsabilidade do legislador a cominação da prisão civil, seus requisitos, prazo de duração e aplicação. É importante assinalar que, segundo julgados anteriores do STF, as exceções previstas em norma constitucional não contêm vinculação do legislador: são permissões, não obrigações para a regulação da utilização da prisão civil: portanto, poderia disciplinar ambas as hipóteses, uma ou nenhuma delas.

Dada a supralegalidade dos tratados internacionais, a controvérsia jurídica resolver-se-ia no exame entre fontes internas e internacionais, de modo que as convenções internacionais de direitos humanos primam sobre a legislação ordinária assim que constatada a antinomia. Desse modo, a Convenção Americana reduziria a prisão civil apenas a uma hipótese, de alimentante inadimplente. Tomada ainda a compreensão da função tutelar dos tratados internacionais acerca de matéria de liberdades públicas presentes nesses acordos, é preciso reconhecer-lhes o efeito inibitório de legislação infraconstitucional que com eles incompatibilizarem-se. Há o reconhecimento ainda de expressivas lições doutrinárias em relação à equiparação dos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos às normas constitucionais, além de denotar que há pacos celebrados antes da Reforma do Judiciário, como o Pacto de San José da Costa Rica, que possuem caráter materialmente constitucional. O Ministro opta por reconhecer a natureza constitucional, evidenciando haver três casos:

I)                    Tratados de direitos humanos incorporados à ordem interna antes da promulgação da CF/1988, tendo índole constitucional por terem sido formalmente recepcionadas.
II)                  Tratados que virão a ser celebrados após a EC 45/2044, que, para serem equiparadas às normas de natureza constitucional, submeter-se-ão ao procedimento previsto no art. 5º, SS3º.
III)                Tratados celebrados durante o ínterim entre a promulgação da CF/1988 e a EC 45/2004, assumindo caráter materialmente constitucional, transmitida em virtude de sua inclusão no bloco de constitucionalidade (“somatória do que é adicionado à Constituição escrita, em função dos valores e princípios nela consagrados”).

Deve haver primazia dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos sobre o direito interno brasileiro, valorizando-se o sistema de proteção aos direitos humanos ao atribuir-lhe caráter hierarquicamente superior ao de legislação ordinária, conferindo supremacia e procedência ao ordenamento doméstico.

É ressaltado que há possibilidade de alteração das exceções constitucionais à vedação da prisão civil por dívida, tanto por atividade legiferante ordinária, quanto por formulações advindas de convenções ou tratadas internacionais, bem como por interpretações da Constituição e do ordenamento feitas por juízes e Tribunais. A interpretação, portanto, é de papel fundamental, posto que não só revela, mas também adéqua o sentido de regras normativas ao contexto social, econômico e político da contemporaneidade, e sua legitimidade está vinculada à sua capacidade de fiel reflexão do “espírito do tempo”.

Ademais, pode ser reconhecida a inconstitucionalidade de tratados internacionais em geral, que reduzam ou suprimam direitos e garantias individuais já preconizados pela Carta Política, visto que, enquanto estatuto fundamental da República, a ela se submetem leis e tratados. E quando da antinomia entre tratados internacionais (que não versem sobre direitos humanos) e a Constituição, prevalecerá a última, por consequência da precedência hierárquica do texto constitucional.

A reforma constitucional trazida pela EC 45/2004 permitiu a reflexão acerca da estatura constitucional de tratados internacionais de direitos humanos.

As razões expostas levam à conclusão de que o Decreto-Lei 911/69 não foi recepcionado pelo ordenamento constitucional, havendo clara incompatibilidade material superveniente entre o ato normativo e a Constituição vigente. Cabe ao credor fiduciário a ação de depósito, porém sem a cominação de prisão civil do fiduciante vencido. Nega-se provimento ao recurso.

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