domingo, 26 de abril de 2020

HC 124.306 - VOTO DO MINISTRO BARROSO



 SÍNTESE DA DEMANDA:
a.       Habeas corpus, com pedido de concessão de medida cautelar, ante acórdão da 6ª Turma do STJ, que não conheceu o HC 290.341/RJ. Pacientes presos em flagrante por aborto e formação de quadrilha, com concurso material por 4 vezes, pois abortaram a gestação da denunciada com o consentimento da mesma.
b.      Foi concedida liberdade provisória em 2013. Em 2014, foi provido recurso do MPE-RJ para decretar prisão preventiva, com base na segurança da ordem pública e necessidade de garantir a aplicação da lei; neste acórdão, a prisão não foi considerada ilegal.
c.       No HC atual, afirmam os impetrantes que não estão satisfeitos os critérios necessários da prisão preventiva, art. 312/CPP. Aduzem que:
                                                              i.      Réus são primários, têm bons antecedentes, trabalho e residência;
                                                            ii.      Há desproporcionalidade na custódia cautelar, uma vez que em caso de condenação o cumprimento se iniciará em regime aberto;
                                                          iii.      No flagrante, não se observou tentativa de fuga.
d.      Assim, impetrantes querem a revogação da prisão preventiva, expedindo-se alvará de soltura.
e.      Em 2014 e 2015, foram deferidas as medidas cautelares aos corréus.
f.        A Procuradoria-Geral da República optou por não conhecer o pedido e denegou a ordem no mérito, retirando a liminar dos acusados.
g.       Ministro Marco Aurélio admitiu habeas corpus e deferiu ordem para afastar prisão preventiva, tal como na liminar deferida. Barroso optou por vista antecipada.
2.       VOTO:
a.       Habeas corpus não é adequado ao caso: o processo deveria ser extinto, sem resolução do mérito, em virtude da inadequação da via processual. à cabe a concessão da ordem de ofício para desfazimento de prisão preventivas, baseando em:
                                                               i.      Não há os requisitos que permitem a prisão cautelar, como risco para ordem pública, econômica, instrução criminal ou aplicação da lei penal, posto que os acusados são réus primários e de bons antecedentes, com trabalho e residência, participam dos atos de instrução e iniciarão o cumprimento em regime aberto à portanto, “a liberdade dos acusados [...] não oferece risco ao processo” à a decretação da prisão cautelar sem demonstração dos requisitos necessários é ilegal.
                                                             ii.      É necessária análise acerca da inconstitucionalidade da incidência do aborto na interrupção voluntária da gestação nos primeiros três meses, sob pena de violação dos direitos fundamentais da mulher, como o princípio da proporcionalidade.
1.       A criminalização é legítima quando há proteção de bem jurídico relevante, não se trate de conduta que exerce direito fundamental e haja proporcionalidade entre comportamento e sanção.
2.       A tipificação em questão está ensejada nos arts. 124 a 126/CP, punindo abortos causados por gestante ou por terceiros com o consentimento daquela. O bem jurídico (vida do feto) é relevante, porém a criminalização do fato em questão viola direitos fundamentais da mulher e não atende ao princípio da proporcionalidade.
b.      Os direitos fundamentais (= direitos humanos incorporados) são frutos do embate entre indivíduo e poder político, econômico e religioso.
                                                               i.      Essa categoria vincula a todos os Poderes estatais, de modo que se torna uma abertura do sistema jurídico ao sistema moral e uma reserva mínima de justiça comum a todos à significam limites e deveres do Estado e da sociedade.
                                                             ii.      Decorrem da dignidade humana (valor intrínseco e autonomia) à pessoas são fins em si, e não meio para alcance de interesses alheios ou coletivos.
                                                            iii.      São oponíveis às maiores políticas à limite ao legislador e ao poder constituinte reformador.
                                                           iv.      Aplicabilidade direta e imediata.
                                                             v.      São restringíveis e confrontáveis entre si; a resposta aos casos concretos é obtida através do sopesamento, aplicando-se princípios de razoabilidade ou proporcionalidade.
c.       A criminalização do caso ofende aos direitos fundamentais a seguir:
                                                              i.      Direitos sexuais e reprodutivos da mulher, pois não deve a mulher manter gravidez indesejada, isto é, não há que se intervir na decisão acerca de quando e se deseja procriar;
                                                            ii.      Autonomia da mulher.
1.       Viola este cerne da liberdade individual, protegida pelo princípio da dignidade humana.
2.       A mulher deve ter o direito de fazer escolhas existenciais e decisões morais acerca da própria vida.
3.       Deve ser permitido a todo indivíduo um âmbito privado de exercício de seus próprios valores, interesses e desejos, que não pode ser objeto de intervenção estatal.
4.       É núcleo da autonomia feminina a decisão acerca do corpo e questões a ele concernentes – o útero não está “a serviço da sociedade”, mas de um indivíduo, com plena capacidade.
                                                          iii.      Integridade física e psíquica, uma vez que é a gestante quem sofre, no corpo (mudanças, riscos e sequelas) e na psique (obrigação vitalícia, renúncia, dedicação e comprometimento), as consequências de uma gravidez – tormento caso indesejada.
                                                           iv.      Igualdade da mulher, já que homens não engravidam e a verdadeira igualdade do gênero deve respeitar a vontade feminina acerca desse trato.
d.      A criminalização veda a possibilidade das mulheres pobres de recorrerem ao sistema público de saúde para alcançar os procedimentos necessários, resultando em automutilações, lesões graves e mortes.
e.      A tipificação viola a proporcionalidade:
                                                              i.      Não atinge os efeitos necessários ao não impactar no número de abortos nacionais.
                                                            ii.      Há outras formas estatais melhores para impedir a prática do aborto, como educação sexual, distribuição de contraceptivos e apoio às mulheres que desejam ter seus filhos, mas estão em circunstâncias adversas.
                                                          iii.      Há desproporcionalidade, observado que os custos sociais decorrentes (saúde pública e morte) são superiores aos benefícios.
f.        Países desenvolvidos e democráticos não criminalizam a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre.
g.       Defere-se a ordem de ofício para afastar prisão preventiva.

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