domingo, 26 de abril de 2020

A faceta mais humanizada da persecução penal global: o Tribunal Penal Internacional e a instauração do Fundo em Favor das Vítimas (Trust Fund for Victims)


Resumo
O presente artigo objetiva analisar os aspectos relativos ao estabelecimento de mecanismos reparatórios no Direito Penal Internacional, mormente o Fundo em Favor das Vítimas, proporcionando um diálogo entre a punição dos crimes mais graves, julgados pelo Tribunal Penal Internacional, e a efetivação do papel de concreção dos direitos humanos nessa área do Direito Internacional Público, à luz da base legal do Fundo e da jurisprudência da Corte.
Palavras-chave: Direito Internacional Público. Direito Internacional Penal. Tribunal Penal Internacional. Direito à reparação. Mecanismo de reparação das vítimas. Fundo em Favor das Vítimas.

1.                  Introdução
Ab initio, observou-se, no contexto de proscrição e punição de crimes que atentavam contra a ordem e segurança internacionais, a criação de tribunais ad hoc, na década de 90, como o Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia (TPII) e o Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR), que se demonstram importantes precedentes históricos para a consolidação do Direito Internacional Penal em termos práticos (Paula, 2011, p. 21).
Os precitados tribunais foram constituídos com lastro jurídico no Capítulo VII da Carta de São Francisco, a teor do que propugna a teoria dos poderes implícitos, por intermédio de resoluções do Conselho de Segurança da ONU[1], o que requer, todavia, votação unânime por parte dos 5 (cinco) membros permanentes (detentores de poder de veto), em consonância com o disposto no artigo 27, parágrafo 3º, da Carta da ONU.
Surge então, em 17 de julho de 1998, com a aprovação do Tratado de Roma, o Tribunal Penal Internacional (“TPI”), de caráter permanente, independente e de jurisdição complementar aos tribunais nacionais (Piovesan, 2013, pp. 289-290), assumindo relevante papel e representando intenso avanço na proteção dos direitos humanos a nível global.
Nesta senda, o Estatuto de Roma (“ER”) inaugurou uma nova dimensão da justiça criminal no plano internacional, no qual preponderou, durante muitas décadas, o descaso e a negligência. A dinâmica definida pelo tratado acerca do complexo sistema de compensação de vítimas inova ao alterar o paradigma do Direito Internacional, sobretudo e especialmente no que tange à imposição do dever de reparação (até então restrito aos Estados) a indivíduos criminalmente responsabilizados pelo Tribunal Penal Internacional, evocando noção característica de ordenamentos nacionais (Megret, 2010, pp. 124), o que, nos ensinamentos de Piovesan (2013, pp. 293), “conjuga, desse modo, a justiça retributiva com a justiça reparatória.”.
Como parte integrante da concepção de retorno ao status quo ante, o Tratado de Roma define, para além das penas aplicáveis de natureza penal, em seu art. 77, a possibilidade de imposição, pelo Tribunal, de medidas sancionatórias de caráter civil, com a consequente determinação de reparação às vítimas e aos seus familiares, a teor do que roga o art. 75 do ER.

2.                  O Fundo em Favor das Vítimas (“Trust Fund for Victims”)
Os Estados Partes do Estatuto de Roma definiram o estabelecimento do Fundo em Favor das Vítimas (“Trust Fund for Victims”) de crimes compreendidos na competência ratione materiae do Tribunal Penal Internacional e em prol de suas famílias, objetivando o levantamento dos fundos necessários para o satisfatório cumprimento das ordens de reparação feitas pela Corte, em caso da insuficiência dos recursos do indivíduo condenado para tanto.
Previsto no Estatuto de Roma, o Fundo em Favor das Vítimas tem respaldo legal no artigo 79 do referido tratado:
Artigo 79 (Fundo em Favor das Vítimas).
1. Por decisão da Assembleia dos Estados Partes, será criado um Fundo a favor das vítimas de crimes da competência do Tribunal, bem como das respectivas famílias.
2. O Tribunal poderá ordenar que o produto das multas e quaisquer outros bens declarados perdidos revertam para o Fundo.
3. O Fundo será gerido em harmonia com os critérios a serem adotados pela Assembleia dos Estados Partes.

A despeito da previsão convencional, a leitura do dispositivo em apreço evidencia que, para a efetiva realização do Fundo, seriam necessárias providências posteriores, mormente para a sua criação e seu estabelecimento – com o início dos trabalhos no contexto dessa perspectiva de justiça restaurativa.
Ex positis, embora tenha se estabelecido em 2002 por intermédio da Resolução ICC-ASP/1/Res. 6 (Assembly of States Parties, 2002), o Fundo em Favor das Vítimas manteve-se precipuamente desconhecido e/ou inativo, porquanto as diligências necessárias para o funcionamento do mecanismo reparatório apenas foram realizadas pela Assembleia dos Estados Partes[2] anos mais tarde, com a regulamentação do Fundo[3] em 2005 e as eleições do Conselho Diretor, em 2006, e do Diretor Executivo, em 2007 (Dannenbaum, 2010, pp. 234), pelo que o exercício, por parte do Tribunal Penal Internacional, da prerrogativa constante no art. 75, (2), do Estatuto, de ordenar o pagamento de reparações, restou, durante este interregno, prejudicado.
Face às considerações aduzidas, a ordem de reparação por parte do Fundo em Favor das Vítimas integra um processo judicial específico perante a Corte Penal Internacional, no qual foi apurada a responsabilidade de um indivíduo na perpetração dos crimes abrangidos pela competência material do TPI, tendo esta persecução penal, ao seu fim, culminado na condenação do respectivo réu. A dita ordem de reparação tem fulcro no art. 75, (3), do Tratado, o qual consigna que “o Tribunal poderá ordenar que a indenização atribuída a título de reparação seja paga por intermédio do Fundo previsto no artigo 79.”.
Outrossim, prevê o art. 98, (2), do Regulamento Processual[4] (International Criminal Court, 2016) que a Corte pode ordenar que a efetiva reparação emitida em face de uma pessoa condenada seja depositada no Fundo em Favor das Vítimas, caso, por ocasião da sentença, não seja viável ou exequível a determinação de reparação individual para cada vítima (em função de desconhecimento de seu nome ou localização, por exemplo), devendo os recursos serem encaminhados a seus destinatários o mais breve possível[5]. Ademais, a reparação dar-se-á por intermédio do mecanismo restaurativo do Fundo nas hipóteses em que “o número de vítimas e o escopo, formas e modalidades de reparação fazem com que uma concessão coletiva seja mais apropriada” (art. 98, (3), do Regulamento Processual). O art. 98, (5), do mesmo diploma, prescreve que os demais recursos do Fundo podem ter sua utilização revertida em benefícios das vítimas sujeitas à provisão do art. 79 do Estatuto.
Essa ordem de reparação permite que o Fundo colete multas ou bens confiscados (art. 79, (2), do Estatuto) de um indivíduo condenado, de modo a prover reparações às vítimas desses delitos. Segundo o art. 75, (1) e (2), do Tratado de Roma, serão definidos pelo Tribunal “princípios aplicáveis às formas de reparação”, que “poderá, nomeadamente, assumir a forma de restituição, indenização ou a reabilitação”; tais determinações, entretanto, deverão respeitar as pretensões formuladas pelo réu, “pelas vítimas, por outras pessoas interessadas ou por outros Estados interessados” (art. 75, (3), do ER).
Em todo caso, as reparações não possuem somente caráter compensatório monetário e/ou individual, podendo assumir diferentes formas (inclusive simbólicas) e/ou figurar em um âmbito coletivo (art. 97, (1), do Regulamento Processual), fomentando os meios necessários para a concretização dos direitos humanos, da segurança e da paz, sempre em consonância com os interesses das vítimas e de suas comunidades (art. 97, (3), do Regulamento).

3.                  A Justiça Restaurativa na jurisprudência do Tribunal Penal Internacional
Conforme já salientado, o mecanismo de ordem de reparação é de funcionamento recente, porquanto apenas em 2016 casos do Tribunal Penal Internacional atingiram esta fase – o que, na perspectiva do Fundo, representa um ponto fulcral para o desenvolvimento e fortalecimento da relação institucional de parceria com a Corte, com vistas a materializar efetivamente o sistema reparatório previsto no Estatuto de Roma (Trust Fund for Victims, 2017?b).
Os quatro casos que atualmente encontram-se nesta etapa envolvem diversos crimes, culminando em uma diversidade de prejuízos causados às vítimas e suas famílias. Nessa perspectiva, o Trust Fund for Victims (2017?b) esclarece que sua função é de assegurar um plano de reparação responsivo a cada um dos danos especificamente sofridos pelas vítimas, de acordo com cada um dos casos, conforme determinado pelas Câmaras Julgadoras da Corte, visando que, por intermédio da implementação eficiente e célere, “a promessa de reparações possa tornar-se uma concreta e significativa realidade para as vítimas, colocando-as em um caminho de cura e positiva reintegração dentro de suas famílias e comunidades” (tradução livre), o que reitera o caráter humanizador da persecução penal no contexto internacional.
The Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo é um caso paradigmático no contexto da justiça restaurativa do TPI, marcado por ser a primeira sentença condenatória da Corte (Piovesan, 2013, pp. 21), proferida em face de Lubanga – fundador e presidente da União dos Patriotas Congoleses (UPC) – pela coautoria de crimes de guerra consubstanciados no recrutamento e alistamento de crianças menores de 15 anos (com fundamento no art. 8, (2), (e), (viii), e art. 25, (3), (a), do Estatuto de Roma) para as Forças Patrióticas pela Liberação do Congo (FPLC), bem como pela imposição da participação delas em conflitos ocorridos entre setembro de 2002 e agosto de 2003.
Em 03 de março de 2015, o Juízo de Recursos do Tribunal Penal Internacional realizou seu julgamento sobre os princípios e procedimentos de reparação, que assume elevada relevância no contexto de justiça transicional, na medida em que, segundo Stahn (2015, pp. 801), “estabelece um regime de responsabilidade por reparações que se baseia no princípio de responsabilização da pessoa condenada”, bem como “no nexo entre a responsabilidade criminal individual e a obrigação de reparar danos.”, representando o marco inicial da utilização do sistema de reparação do TPI (Yang, 2017, pp. 11). Nesse sentido, a Corte determinou que a reparação deve ser concedida de acordo com o prejuízo sofrido como resultado da cometimento de qualquer crime compreendido na jurisdição prevista no Estatuto de Roma[6], bem como que o nexo causal entre o dano causado e o prejuízo sofrido, para fins reparatórios, deve ser determinado à luz das circunstâncias fáticas em uma análise casuística[7].

4.                  Conclusão
Logo, forçoso reconhecer que a assistência reparatória oferecida pelo mecanismo do Fundo em Favor das Vítimas, definido pelo Estatuto de Roma e estabelecido pela Assembleia dos Estados Partes do referido tratado, é crucial no âmbito da persecução criminal global, cujo relevo, malgrado nuclear e inexorável no que tange à concepção do procedimento em cotejo, não é costumeiramente observada pela perspectiva teleológica das normas que disciplinam a investigação, o processamento e a condenação dos perpetradores de práticas delitivas valoradas como as mais graves em relação à humanidade.
Sendo assim, a presente análise traz à baila um aspecto relegado ao segundo plano na abordagem do panorama do Direito Internacional Penal, quando, em verdade, a justiça restaurativa do Tribunal Penal Internacional e seus mecanismos deveria representar um ponto nevrálgico no tratamento das questões atinentes a esse sistema, na medida em que clarifica o propósito da Corte e de todo o complexo no seu entorno, não como mero instrumento de punição por punição, justificada por si só, ou do simples paradigma retributivo de justiça, mas salientando a natureza de reparação dos danos oriundos dos delitos perpetrados por indivíduos processados e condenados pelo TPI. Isto posto, resta sobrelevado que a ênfase deste regime reside em beneficiar as vítimas, mais do que promover a punição dos criminosos.

REFERÊNCIAS

Assembly of States Parties. Resolution ICC-ASP/1/Res. 6. In: Assembly of States Parties to the Rome Statute. Disponível em: <https://asp.icc-cpi.int/iccdocs/asp_docs/Resolutions/ICC-ASP-ASP1-Res-06-ENG.pdf>. Acesso em 30 jun. 2018.

Dannenbaum, Tom. The International Criminal Court, Article 79 and Transitional Justice – The Case for an Independent Trust Fund for Victims. In: Wisconsin International Law Journal, vol. 28, 2010, pp. 234-298. Madison, Wisconsin: University of Wisconsin-Madison, 2010.

International Criminal Court. Rules of Procedure and Evidence. The Hague, Netherlands: International Criminal Court, 2016.

Megret, Frederic. Justifying Compensation by the International Criminal Court’s Victims Trust Fund – Lessons from Domestic Compensation Schemes. In: Brooklyn Journal of International Law, vol. 36, 2010, pp. 123-204. Brooklyn, New York: Brooklyn Law School.

Paula, Luiz Augusto Módolo de. Genocídio e o Tribunal Penal Internacional. 272 f. Tese (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.

Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

Stahn, Carsten. Reparative Justice after the Lubanga Appeal Judgment. In: Journal of International Criminal Justice 13, 2015, pp. 801-813. Oxford, United Kingdom: Oxford University Press, 2015.

Trust Fund For Victims. Legal Basis. In: The Trust Fund for Victims, [2017?]a. Disponível em: <https://www.trustfundforvictims.org/en/about/legal-basis>. Acesso em 30 jun. 2018.

______. Reparations Orders. In: The Trust Fund for Victims, [2017?]b. Disponível em: <https://www.trustfundforvictims.org/en/about/legal-basis>. Acesso em 30 jun. 2018.

______. Vision and Missions. In: The Trust Fund for Victims, [2017?]c. Disponível em: <https://www.trustfundforvictims.org/en/about/legal-basis>. Acesso em 30 jun. 2018.

Wang, Yiman. Making Invisible Children Visible – An Appraisal of the Lubanga Decision. In: SSRN Electronic Journal, 2017. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3073478>. Acesso em 01 jul. 2018.




[1] Com a edição da Resolução nº 827, do Conselho de Segurança da ONU, em 25 de maio de 1993, foi criado o Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia; o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, por sua vez, estabeleceu-se por meio da Resolução nº 955, de 08 de novembro de 1994, nos quadros das Nações Unidas.
[2] Em inglês, Assembly of States Parties (ASP).
[3] Adotada na 4ª Assembleia dos Estados Partes, por consenso, em dezembro de 2005, a Resolução ICC-ASP/4/Res. 3 instituiu o Regulamento do Fundo em Favor das Vítimas (“Regulations of the Trust Fund for Victims”).
[4] O Regulamento Processual (em inglês, “The Rules of Procedure and Evidence”) é um instrumento para a aplicação do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, que disciplina noções regimentais em seu art. 51, estando presente em diversas disposições estatutárias. Insta pontuar que, nos termos do art. 21, (1) (Direito Aplicável), do Tratado de Roma, “[o] Tribunal aplicará: a) Em primeiro lugar, o presente Estatuto, os Elementos Constitutivos do Crime e o Regulamento Processual;” (g.n.), ressaltando sua relevância e posição na Corte.
[5] O Regulamento do Fundo em Favor das Vítimas (vide nota n. 2 supra) determina, em seus arts. 60, que, nesses casos, o Secretariado deverá determinar todos os dados demográficos e estatísticos relevantes sobre o grupo de vítimas, tal como determinado pela Corte, e listar as alternativas (exemplificadas no art. 61) para definição de eventuais dados faltantes para submeter à aprovação do Conselho Diretor.
[6] Internationational Criminal Court, The Appeals Chamber, Judgment on the appeals against the “Decision establishing the principles and procedure to be applied to reparations” of 7 August 2012, 3 de março de 2015, § 79.
[7] Ibidem, § 80.

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