Resumo
O
presente artigo objetiva analisar os aspectos relativos ao estabelecimento de mecanismos
reparatórios no Direito Penal Internacional, mormente o Fundo em Favor das
Vítimas, proporcionando um diálogo entre a punição dos crimes mais graves,
julgados pelo Tribunal Penal Internacional, e a efetivação do papel de
concreção dos direitos humanos nessa área do Direito Internacional Público, à
luz da base legal do Fundo e da jurisprudência da Corte.
Palavras-chave:
Direito Internacional Público. Direito Internacional Penal. Tribunal Penal
Internacional. Direito à reparação. Mecanismo de reparação das vítimas. Fundo
em Favor das Vítimas.
1.
Introdução
Ab initio,
observou-se, no contexto de proscrição e punição de crimes que atentavam contra
a ordem e segurança internacionais, a criação de tribunais ad hoc, na década de 90, como o Tribunal Penal Internacional para a
antiga Iugoslávia (TPII) e o Tribunal
Penal Internacional para Ruanda (TPIR), que se demonstram importantes
precedentes históricos para a consolidação do Direito Internacional Penal em
termos práticos (Paula, 2011, p.
21).
Os
precitados tribunais foram constituídos com lastro jurídico no Capítulo VII da
Carta de São Francisco, a teor do que propugna a teoria dos poderes implícitos, por intermédio de resoluções do
Conselho de Segurança da ONU[1], o
que requer, todavia, votação unânime por parte dos 5 (cinco) membros
permanentes (detentores de poder de veto), em consonância com o disposto no
artigo 27, parágrafo 3º, da Carta da ONU.
Surge
então, em 17 de julho de 1998, com a aprovação do Tratado de Roma, o Tribunal
Penal Internacional (“TPI”), de caráter permanente, independente e de jurisdição
complementar aos tribunais nacionais (Piovesan,
2013, pp. 289-290), assumindo relevante papel e representando intenso avanço na
proteção dos direitos humanos a nível global.
Nesta
senda, o Estatuto de Roma (“ER”) inaugurou uma nova dimensão da justiça
criminal no plano internacional, no qual preponderou, durante muitas décadas, o
descaso e a negligência. A dinâmica definida pelo tratado acerca do complexo
sistema de compensação de vítimas inova ao alterar o paradigma do Direito
Internacional, sobretudo e especialmente no que tange à imposição do dever de
reparação (até então restrito aos Estados) a indivíduos criminalmente
responsabilizados pelo Tribunal Penal Internacional, evocando noção
característica de ordenamentos nacionais (Megret,
2010, pp. 124), o que, nos ensinamentos de Piovesan
(2013, pp. 293), “conjuga, desse
modo, a justiça retributiva com a justiça reparatória.”.
Como
parte integrante da concepção de retorno ao status
quo ante, o Tratado de Roma define, para além das penas aplicáveis de
natureza penal, em seu art. 77, a possibilidade de imposição, pelo Tribunal, de
medidas sancionatórias de caráter civil, com a consequente determinação de
reparação às vítimas e aos seus familiares, a teor do que roga o art. 75 do ER.
2.
O Fundo em Favor das Vítimas (“Trust Fund for Victims”)
Os
Estados Partes do Estatuto de Roma definiram o estabelecimento do Fundo em
Favor das Vítimas (“Trust Fund for
Victims”) de crimes compreendidos na competência ratione materiae do Tribunal Penal Internacional e em prol de suas
famílias, objetivando o levantamento dos fundos necessários para o satisfatório
cumprimento das ordens de reparação feitas pela Corte, em caso da insuficiência
dos recursos do indivíduo condenado para tanto.
Previsto
no Estatuto de Roma, o Fundo em Favor das Vítimas tem respaldo legal no artigo
79 do referido tratado:
Artigo 79 (Fundo em Favor das Vítimas).
1. Por decisão da Assembleia dos Estados Partes, será
criado um Fundo a favor das vítimas de crimes da competência do Tribunal, bem
como das respectivas famílias.
2. O Tribunal poderá ordenar que o produto das multas e
quaisquer outros bens declarados perdidos revertam para o Fundo.
3. O Fundo será gerido em harmonia com os critérios a
serem adotados pela Assembleia dos Estados Partes.
A
despeito da previsão convencional, a leitura do dispositivo em apreço evidencia
que, para a efetiva realização do Fundo, seriam necessárias providências
posteriores, mormente para a sua criação e seu estabelecimento – com o início
dos trabalhos no contexto dessa perspectiva de justiça restaurativa.
Ex positis,
embora tenha se estabelecido em 2002 por intermédio da Resolução ICC-ASP/1/Res.
6 (Assembly of States Parties, 2002),
o Fundo em Favor das Vítimas manteve-se precipuamente desconhecido e/ou inativo,
porquanto as diligências necessárias para o funcionamento do mecanismo
reparatório apenas foram realizadas pela Assembleia dos Estados Partes[2] anos
mais tarde, com a regulamentação do Fundo[3] em
2005 e as eleições do Conselho Diretor, em 2006, e do Diretor Executivo, em
2007 (Dannenbaum, 2010, pp. 234),
pelo que o exercício, por parte do Tribunal Penal Internacional, da
prerrogativa constante no art. 75, (2), do Estatuto, de ordenar o pagamento de
reparações, restou, durante este interregno, prejudicado.
Face
às considerações aduzidas, a ordem de reparação por parte do Fundo em Favor das
Vítimas integra um processo judicial específico perante a Corte Penal
Internacional, no qual foi apurada a responsabilidade de um indivíduo na
perpetração dos crimes abrangidos pela competência material do TPI, tendo esta
persecução penal, ao seu fim, culminado na condenação do respectivo réu. A dita
ordem de reparação tem fulcro no art. 75, (3), do Tratado, o qual consigna que
“o Tribunal poderá ordenar que a
indenização atribuída a título de reparação seja paga por intermédio do Fundo
previsto no artigo 79.”.
Outrossim,
prevê o art. 98, (2), do Regulamento Processual[4] (International Criminal Court, 2016) que
a Corte pode ordenar que a efetiva reparação emitida em face de uma pessoa
condenada seja depositada no Fundo em Favor das Vítimas, caso, por ocasião da
sentença, não seja viável ou exequível a determinação de reparação individual
para cada vítima (em função de desconhecimento de seu nome ou localização, por
exemplo), devendo os recursos serem encaminhados a seus destinatários o mais
breve possível[5].
Ademais, a reparação dar-se-á por intermédio do mecanismo restaurativo do Fundo
nas hipóteses em que “o número de vítimas
e o escopo, formas e modalidades de reparação fazem com que uma concessão
coletiva seja mais apropriada” (art. 98, (3), do Regulamento Processual). O
art. 98, (5), do mesmo diploma, prescreve que os demais recursos do Fundo podem
ter sua utilização revertida em benefícios das vítimas sujeitas à provisão do
art. 79 do Estatuto.
Essa
ordem de reparação permite que o Fundo colete multas ou bens confiscados (art.
79, (2), do Estatuto) de um indivíduo condenado, de modo a prover reparações às
vítimas desses delitos. Segundo o art. 75, (1) e (2), do Tratado de Roma, serão
definidos pelo Tribunal “princípios
aplicáveis às formas de reparação”, que “poderá, nomeadamente, assumir
a forma de restituição, indenização ou a reabilitação”; tais determinações,
entretanto, deverão respeitar as pretensões formuladas pelo réu, “pelas vítimas, por outras pessoas
interessadas ou por outros Estados interessados” (art. 75, (3), do ER).
Em
todo caso, as reparações não possuem somente caráter compensatório monetário
e/ou individual, podendo assumir diferentes formas (inclusive simbólicas) e/ou figurar
em um âmbito coletivo (art. 97, (1), do Regulamento Processual), fomentando os
meios necessários para a concretização dos direitos humanos, da segurança e da
paz, sempre em consonância com os interesses das vítimas e de suas comunidades
(art. 97, (3), do Regulamento).
3.
A Justiça Restaurativa na jurisprudência do Tribunal
Penal Internacional
Conforme
já salientado, o mecanismo de ordem de reparação é de funcionamento recente, porquanto
apenas em 2016 casos do Tribunal Penal Internacional atingiram esta fase – o
que, na perspectiva do Fundo, representa um ponto fulcral para o desenvolvimento
e fortalecimento da relação institucional de parceria com a Corte, com vistas a
materializar efetivamente o sistema reparatório previsto no Estatuto de Roma (Trust Fund for Victims, 2017?b).
Os
quatro casos que atualmente encontram-se nesta etapa envolvem diversos crimes,
culminando em uma diversidade de prejuízos causados às vítimas e suas famílias.
Nessa perspectiva, o Trust Fund for
Victims (2017?b) esclarece que sua função é de assegurar um plano de
reparação responsivo a cada um dos danos especificamente sofridos pelas
vítimas, de acordo com cada um dos casos, conforme determinado pelas Câmaras
Julgadoras da Corte, visando que, por intermédio da implementação eficiente e
célere, “a promessa de reparações possa
tornar-se uma concreta e significativa realidade para as vítimas, colocando-as
em um caminho de cura e positiva reintegração dentro de suas famílias e
comunidades” (tradução livre), o que reitera o caráter humanizador da
persecução penal no contexto internacional.
The
Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo é um caso paradigmático
no contexto da justiça restaurativa do TPI, marcado por ser a primeira sentença
condenatória da Corte (Piovesan,
2013, pp. 21), proferida em face de Lubanga – fundador e presidente da União
dos Patriotas Congoleses (UPC) – pela coautoria de crimes de guerra consubstanciados
no recrutamento e alistamento de crianças menores de 15 anos (com fundamento no
art. 8, (2), (e), (viii), e art. 25, (3), (a), do Estatuto de Roma) para as Forças
Patrióticas pela Liberação do Congo (FPLC), bem como pela imposição da
participação delas em conflitos ocorridos entre setembro de 2002 e agosto de
2003.
Em
03 de março de 2015, o Juízo de Recursos do Tribunal Penal Internacional
realizou seu julgamento sobre os princípios e procedimentos de reparação, que
assume elevada relevância no contexto de justiça transicional, na medida em que,
segundo Stahn (2015, pp. 801), “estabelece um regime de responsabilidade por
reparações que se baseia no princípio de responsabilização da pessoa condenada”,
bem como “no nexo entre a
responsabilidade criminal individual e a obrigação de reparar danos.”, representando
o marco inicial da utilização do sistema de reparação do TPI (Yang, 2017, pp. 11). Nesse sentido, a
Corte determinou que a reparação deve ser concedida de acordo com o prejuízo
sofrido como resultado da cometimento de qualquer crime compreendido na
jurisdição prevista no Estatuto de Roma[6],
bem como que o nexo causal entre o dano causado e o prejuízo sofrido, para fins
reparatórios, deve ser determinado à luz das circunstâncias fáticas em uma
análise casuística[7].
4.
Conclusão
Logo,
forçoso reconhecer que a assistência reparatória oferecida pelo mecanismo do
Fundo em Favor das Vítimas, definido pelo Estatuto de Roma e estabelecido pela
Assembleia dos Estados Partes do referido tratado, é crucial no âmbito da
persecução criminal global, cujo relevo, malgrado nuclear e inexorável no que
tange à concepção do procedimento em cotejo, não é costumeiramente observada
pela perspectiva teleológica das normas que disciplinam a investigação, o
processamento e a condenação dos perpetradores de práticas delitivas valoradas
como as mais graves em relação à humanidade.
Sendo
assim, a presente análise traz à baila um aspecto relegado ao segundo plano na
abordagem do panorama do Direito Internacional Penal, quando, em verdade, a
justiça restaurativa do Tribunal Penal Internacional e seus mecanismos deveria
representar um ponto nevrálgico no tratamento das questões atinentes a esse
sistema, na medida em que clarifica o propósito da Corte e de todo o complexo
no seu entorno, não como mero instrumento de punição por punição, justificada
por si só, ou do simples paradigma retributivo de justiça, mas salientando a
natureza de reparação dos danos oriundos dos delitos perpetrados por indivíduos
processados e condenados pelo TPI. Isto posto, resta sobrelevado que a ênfase deste
regime reside em beneficiar as vítimas, mais do que promover a punição dos
criminosos.
REFERÊNCIAS
Assembly of States Parties. Resolution
ICC-ASP/1/Res. 6. In: Assembly of
States Parties to the Rome Statute. Disponível em:
<https://asp.icc-cpi.int/iccdocs/asp_docs/Resolutions/ICC-ASP-ASP1-Res-06-ENG.pdf>.
Acesso em 30 jun. 2018.
Dannenbaum, Tom. The International Criminal Court, Article 79
and Transitional Justice – The Case for an Independent Trust Fund for Victims.
In: Wisconsin International Law Journal, vol.
28, 2010, pp. 234-298. Madison,
Wisconsin: University of Wisconsin-Madison, 2010.
International Criminal Court. Rules of
Procedure and Evidence. The Hague, Netherlands: International Criminal
Court, 2016.
Megret, Frederic.
Justifying Compensation by the
International Criminal Court’s Victims Trust Fund – Lessons from Domestic
Compensation Schemes. In: Brooklyn
Journal of International Law, vol. 36, 2010, pp. 123-204. Brooklyn, New
York: Brooklyn Law School.
Paula, Luiz Augusto Módolo de. Genocídio e o Tribunal Penal Internacional. 272
f. Tese (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2011.
Piovesan,
Flávia. Direitos Humanos e o Direito
Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
Stahn, Carsten.
Reparative Justice after the Lubanga Appeal Judgment. In: Journal of International Criminal Justice
13, 2015, pp. 801-813. Oxford, United Kingdom: Oxford University Press,
2015.
Trust Fund For Victims. Legal Basis.
In: The Trust Fund for Victims, [2017?]a. Disponível em: <https://www.trustfundforvictims.org/en/about/legal-basis>.
Acesso em 30 jun. 2018.
______. Reparations Orders. In: The Trust Fund for Victims, [2017?]b. Disponível em:
<https://www.trustfundforvictims.org/en/about/legal-basis>. Acesso em 30
jun. 2018.
______. Vision and Missions. In: The Trust Fund for Victims, [2017?]c. Disponível em:
<https://www.trustfundforvictims.org/en/about/legal-basis>. Acesso em 30 jun. 2018.
Wang, Yiman.
Making Invisible Children Visible – An
Appraisal of the Lubanga Decision. In: SSRN Electronic Journal, 2017. Disponível em:
<https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3073478>. Acesso em
01 jul. 2018.
[1] Com a edição da Resolução nº 827, do Conselho de
Segurança da ONU, em 25 de maio de 1993, foi criado o Tribunal Penal
Internacional para a antiga Iugoslávia; o Tribunal Penal Internacional para
Ruanda, por sua vez, estabeleceu-se por meio da Resolução nº 955, de 08 de novembro de 1994, nos quadros das Nações
Unidas.
[2]
Em inglês, Assembly of States Parties (ASP).
[3]
Adotada na 4ª Assembleia dos Estados Partes, por consenso, em dezembro de 2005,
a Resolução ICC-ASP/4/Res. 3 instituiu o Regulamento do Fundo em Favor das
Vítimas (“Regulations of the Trust Fund
for Victims”).
[4]
O Regulamento Processual (em inglês, “The
Rules of Procedure and Evidence”) é um instrumento para a aplicação do
Estatuto do Tribunal Penal Internacional, que disciplina noções regimentais em
seu art. 51, estando presente em diversas disposições estatutárias. Insta
pontuar que, nos termos do art. 21, (1) (Direito Aplicável), do Tratado de
Roma, “[o] Tribunal aplicará: a) Em
primeiro lugar, o presente Estatuto, os Elementos Constitutivos do Crime e o
Regulamento Processual;” (g.n.), ressaltando sua relevância e posição
na Corte.
[5]
O Regulamento do Fundo em Favor das Vítimas (vide nota n. 2 supra)
determina, em seus arts. 60, que, nesses casos, o Secretariado deverá
determinar todos os dados demográficos e estatísticos relevantes sobre o grupo
de vítimas, tal como determinado pela Corte, e listar as alternativas
(exemplificadas no art. 61) para definição de eventuais dados faltantes para
submeter à aprovação do Conselho Diretor.
[6] Internationational
Criminal Court, The Appeals Chamber, Judgment on the appeals against the
“Decision establishing the principles and procedure to be applied to
reparations” of 7 August 2012, 3 de março de 2015, § 79.
[7]
Ibidem, § 80.
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