O
artigo Razões históricas de um sistema
penal cruel, de Cláudio do Prado Amaral, traz, em sua essência, a
demonstração de como tem sido o posicionamento brasileiro, seja popular, seja
político-jurídico, é de passividade em relação ao que classifica como “tragédia
sistêmico-penal”, e que está frontalmente relacionada às condições subumanas de
vida e mantimento no cárcere nacional e à formação tecnicista que é usualmente
dada aos bacharéis.
O
livro DesCasos traz uma compreensão
da realidade brasileira e de seu ordenamento jurídico de imprescindibilidade
tamanha não apenas para aqueles que demonstram interesse em seguir carreira
jurídica, advocatícia ou não, criminal ou não; é um dado, uma referência da
compreensão das mazelas, das falhas, das deficiências de todo o sistema penal
brasileiro, que não pode ser entendido com base apenas na leitura do Código
Civil, nem mesmo da doutrina ou da jurisprudência, dado que as maiores
dificuldades não se encontram no conteúdo das legislações, mas no procedimento,
na burocracia, na concepção dos juristas sobre a sociedade (subjetivamente,
embora também considerando o modelo de sua formação), no preconceito racial, na
pobreza. Recuperando Nilo Batista, em “Introdução
Crítica ao Direito Penal Brasileiro”, o sistema mantém os aspectos de
seletividade, repressividade e estigmatização. E a obra de Alexandra Lebelson
Szafir permite, através de uma observação do interior do próprio ambiente, que
as feridas sejam expostas e escancaradas, denotando, profundamente, as diversas
imperfeições a que se submetem os cidadãos brasileiros.
Em
primeiro aspecto, está evidente como predomina, entre o colegiado de
magistrados, um sentimento de superioridade sobre a sociedade remanescente, e
uma ideologia formalística, arcaica, alienada, incongruente com a modernidade e
com a maior parte dos valores e direitos humanos que hoje preponderam. Há um
claro desvio da função primordial – o julgamento idôneo e justo dos casos
apresentados –, apresentando desinteresse, tanto pelos direitos básicos – que,
enquanto juristas, deveriam prezar e defender a todo custo –, quanto pelos
próprios personagens que também compõem o sistema judiciário, sejam os presos,
sejam guardas, advogados ou advogadas (é importante ressaltar que há ainda o
tratamento desigual por gênero). Em relação ao próprio Judiciário, é
perceptível isso quando se analisa os episódios “Silêncio: magistrado dormindo”, em que o citado, por estar
dormindo, não se apercebe da deficiência física do advogado que realizava a
sustentação oral, exigindo-lhe que permanecesse em pé; “A saia da discórdia”, em que a própria Alexandra é barrada, após
requerer autorização do juiz para participar do julgamento utilizando calça
comprida – seria necessária uma saia, uma tradição deturpadamente misógina e
ultrapassada, que está a critério do juiz para deferir ou não –; e “Algemas”, relatado pela autora como um
“chilique” do juiz para uma exigência perpétua de que, para apresentação do
preso a ele, era requisito que o mesmo estivesse algemado – de outro modo, não
haveria reunião, mesmo que não houvesse periculosidade ou risco de fuga do
indivíduo em questão, com o intuito específico de aprofundar a estigmatização
daquele já cumpria, devidamente, a pena na posição que lhe cabia,
inferiorizando-o, humilhando-o, demonstrando que a intenção não era a incumbida
aos juízes, mas decorrente de sua formação elitista.
O
desinteresse e a desumanidade também se dão em relação àqueles que, infratores
de fato ou não, se submetem ao ofício do julgador. Isso está evidente quando
promotores e juízes desconsideram o contexto analisado para agir de forma cruel
e injusta em casos claramente injustiçados e, explicitamente, observáveis por
esse ponto de vista. É a situação de Rosalinda,
cujas condições de saúde e vida foram expostas pelo promotor para justificar um
agravamento do acordo firmado, quando, na verdade, se tratava de legítima
defesa; da insistência do Ministério Público em recorrer e o Tribunal de
Justiça em condenar um adolescente evidentemente condenado pela própria
violência policial pelo resto de sua vida, além das consequentes enfermidades
que acumulou em virtude de sua condição; o descumprimento de princípios
constitucionais, como o de fundamentação das decisões (art. 93/CF) para que o réu tenha ciência da motivação pela qual
está sendo preso, além de inserir efeitos da prisionização em pessoas que já
haviam se regenerado em sociedade e que, presas sem necessidade, se tornariam
cidadãos desempregados e improdutivos.
É
também questão de despreparo ou também de ausência de interesse com a população
mais carente e vulnerável ao sistema penal a ação de diversos advogados e os
próprios erros da burocracia. É gritante a quantidade de casos exemplificados
pela autora em que, apenas em virtude do panorama socioeconômico, do
desconhecimento e da impossibilidade de contratação de um advogado, é que
muitos permaneceram aprisionados indevidamente, muito além do prazo necessário
e sentenciado. Pode ser observado, por exemplo, no capítulo em que se relata a
prisão, por um ano e oito meses, do indivíduo, apenas pelo fato de a oficial de
justiça não ter encontrado o endereço do réu, sendo absolvida pela “dificuldade
de encontrar endereços em favela”, com o adendo escancarado da criminalização
da pobreza; também aquele em que, alternando entre juízes e subindo de
instância, por virtude de conflito negativo, não ocorreu a ninguém desfazer a
prisão; além dos múltiplos enredos que são consequência de não haver prazo fixo
para a conclusão de processo e soltura do réu, devendo haver requisição ao juiz
ou ao Tribunal para apreciação, o que inclui laudos que nunca chegam, advogados
ausentes, prisões sem julgamento, e negligência com doentes mentais – tratados
como delinquentes ordinários, e não com os cuidados necessários e
especializados.
O
aparato policial, que também integra o sistema penal considerado como um todo,
também tem suas falhas. A tortura, como diz a própria autora, não teve a
prática findada com o encerramento do regime ditatorial e a redemocratização do
Brasil; ela persiste nas entranhas dos Distritos Policiais, nos
interrogatórios, incriminando e gerando falsas confissões, de falsos
testemunhos, como no caso de Luciano; com instrumentos, como tacos; e em
vinganças de colegas e ex-colegas policiais, seja por motivos justos, seja por
causas fúteis, injustificadas.
Em
suma, é imperioso afirmar que a leitura de DesCasos
é, tal como a leitura do livro de Nilo Batista, sobre o Direito Penal
Brasileiro, fundamental para todos que pretendem atuar no sistema penal – e
para a sociedade, como um todo, que precisa ter seus olhos abertos para o
“inferno na terra” que são os cárceres de hoje. A ciência dogmática do Direito
Penal ensina muito, demonstra princípios que valorizam a pessoa e a dignidade
humana, os bens jurídicos mais essenciais; veda comportamentos lesivos e que
abalam a ordem da sociedade; pretende punir, ressocializando; estabelece formas
alternativas desse mesmo castigo. Todavia, é insuficiente: são pessoas como a
advogada Alexandra e obras como DesCasos que
externalizam, para o mundo, os problemas inerentes à prisão e todo o seu
procedimento, manifestando as violações constitucionais e aos Direitos Humanos
que são, por conta da condição de “criminosos”, mascarados e ignorados, por
profissionais jurídicos, políticos, por toda a população. E como demonstrado
por Amaral, são razões históricas – que condicionaram a criação de
universidades brasileiras de Direito às tradições portuguesas, europeias –, que
tornaram as academias mais reproduções do que verdadeiras “reflexões criativas
jurídicas”, com discentes preocupados com as “letras secas” da Lei, não com
discernimentos sobre os embates filosóficos, econômicos, sociológicos, sociais
que envolvem e se correlacionam aos saberes jurídicos. E é também de ordem
pedagógica, de acordo com a cultura jurídica que é provida aos bacharéis, que
nascem penalistas passivos e reprodutores dos aparelhos hegemônicos que se
instauram em sociedade, através de corpos docentes e estruturas conservadoras
de poder, e não espirituosos e críticos da atual configuração; a necessidade de
uma instrução nas universidades para que, de fato, estejam interessadas no país
e em seus problemas é fundamental para que as questões, tais como apresentadas
aqui, de alienações, disparates, desumanidade e horrores sociais sejam
extirpados e substituídos pela verdadeira função social do direito.
Referências bibliográficas:
SZAFIR, Alexandra Lebelson. DESCASOS: uma advogada às voltas com o direito dos excluídos. São Paulo: Saraiva, 2010, 1ª ed.
AMARAL, Cláudio do Prado. Razões históricas de um sistema penal cruel. In Boletim IBCCRIM. São Paulo: IBCCRIM, ano 19, n. 218, p. 02-03, jan., 2011.
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