domingo, 20 de novembro de 2016

Documentário "Do Lado de Fora" e o princípio da pessoalidade



O princípio da pessoalidade (ou personalidade) da pena, previsto no art. 5º, XLV, da Constituição Federal, dispõe que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”. Destarte, compreende-se que a responsabilidade [penal] é (ou deveria ser) individual, de modo que a culpabilidade é o fator que determina a responsabilização criminal, e nada além dela; ninguém tem pena imposta por fato causado por outrem, por fato alheio. Todavia, o dispositivo permite a reparação (que não é sanção penal) do dano por terceiros no caso de heranças, mas limitando-se ao patrimônio objeto de sucessão, na esfera civil.

É correto, portanto, afirmar que há a observação desse dispositivo no ordenamento brasileiro. Genericamente, resta de modo explícito que, em contraposição ao direito pré-beccariano, no estado de polícia, a sanção estatal não se estende para além daquele que infringiu o direito, mesmo que haja vínculo parental em relação ao condenado – situação observada, por exemplo,  no julgamento de Tiradentes, cuja extensão penal também abrangia a família do mesmo, declarando-os infames e o confisco dos bens –; desse modo, formal e juridicamente, não há, hodiernamente, de forma direta, punição aos descendentes, aos companheiros, e nem pode haver por determinação judicial – uma das conquistas mais expressivas para a dignidade e justiça, “a sanção penal não pode ser aplicada ou executada contra quem não seja o autor ou partícipe do fato punível.” (Dotti, 2001, p. 65), em consonância com a teoria da equivalência das condições (conditio sine qua non). Essa posição do Direito é a mais lógica, principalmente através da análise da perspectiva de que “a pena é um medida de caráter estritamente pessoal, em virtude de consistir numa ingerência ressocializadora sobre o apenado”, segundo Zaffaroni e Pierangeli.

Além do princípio da pessoalidade, que rege a seara penal e não há exceções na legislação em relação ao dispositivo, é possível citar uma manifestação mais clara (e/ou tentativa) de personalização, através do art. 50, §2º, do Código Penal, em que se trata sobre a pena de multa, prevendo que o “desconto não deve incidir sobre os recursos indispensáveis ao sustento do condenado e de sua família”, de base principiológica. E embora nem sempre haja previsão explícita, sempre está presente nas relações penais. Para compensar esse problema, há até mesmo o auxílio-reclusão, benefício para os dependentes do segurado do INSS, de modo a permitir que haja a subsistência da família para se manter sem o condenado. A possibilidade de visita íntima e amamentação de bebês também são positivadas pelo direito brasileiro, de modo a que os respectivos companheiros e as crianças não fiquem desamparados em suas respectivas relações com os indivíduos condenados, reiterando o caráter da pessoalidade da pena em certo aspecto, embora a última circunstância também seja uma questão controvertida e delicada quando se trata desse assunto.

Em contrapartida, o art. 50, do Código Penal, em si, pode ser observado sob perspectiva adversa, pois o instituto da pena de multa tem sido controverso na doutrina, no que concerne à conformidade e aos limites em relação à norma constitucional que embasa esse debate. A previsão em seu § 1º é de que “a cobrança da multa pode efetuar-se mediante desconto no vencimento ou salário do condenado [...]”, o que enseja a discussão de que, mesmo com a vigência do parágrafo seguinte, determinando certos limites para a aplicação, ainda haveria, por conseguinte de afetar a renda do condenado, interferência na vida de terceiros – configurando uma violação constitucional. O auxílio-reclusão, embora seja positivo, é claramente muito estrito e específico, pois está limitado a uma quantidade específica e apenas aos segurados do INSS por, pelo menos, 18 anos.

No que se refere ao que não é observado na ordem jurídica brasileira sobre a personalização das penas, além da característica econômica supracitada, há os aspectos sociais, que são predominantes no direito penal: a doutrina indica que a realidade da penal afeta, socialmente, terceiros não culpados, principalmente os seus familiares, mesmo que, juridicamente, essa situação tente ser contornada – a Lei de Execução Penal (7.210/84), prevê que “art. 23 - Incumbe ao serviço de assistência social: [...] VII - orientar e amparar, quando necessário, a família do preso, do internado e da vítima.”. É entendimento de que, apesar dessa atribuição, não há a orientação devida para os parentes do condenado por sanção penal.

Tal como se pode observar, tanto a doutrina quanto o documentário demonstram que há profunda estigmatização para a família do condenado, principalmente na perspectiva das mães e mulheres. Além disso, a própria tentativa de interação com os presos – a visita –, que também visa a ressocialização, está imbuída de um vasto número de penalizações para os familiares, para os visitantes em geral, o que demonstra um rompimento da base principiológica, como: a burocracia institucionalizada de modo extensamente negativo, impedindo que familiares distantes, normalmente dos interiores dos respectivos Estados, possam visitá-los – condição também atrelada à falta de informação e/ou organização dos próprios presídios, aliada ainda ao panorama socioeconômico; a revista vexatória, revista íntima que é realizada em mulheres – idosas, adultas ou crianças – para impedir a entrada de drogas e/ou outros itens vetados, devendo ficar nuas, saltarem ou agacharem, e que atenta à dignidade humana e a intimidade, sendo então proibidos – e, em determinados casos, ainda assim praticados – por alguns dispositivos, sem norma que o permita; a quantidade enorme de filas as quais se submetem os visitantes; os “acampamentos” do lado externo prisional, de mulheres e crianças, à espera do horário de entrada, durante uma noite inteira, expondo-se ao clima, aos perigos urbanos e a diversos animais – baratas, cobras, cachorros, gatos –, deitados no chão e sem infraestrutura básica para alimentação e higiene; a humilhação da exposição das circunstâncias perante as quais se realizam as visitas íntimas, fora o tempo reduzido; a posição inferior que esposas e mães as quais são reduzidas na sociedade, pela imagem do companheiro ou filho condenado, sendo, então, parentes de “bandido” – preconceito, discriminação com mulheres que não estão relacionadas a qualquer crime; a condição psicológica afetada em decorrência da imagem atribuída pela sociedade a elas, de sofrimento, vergonha e tristeza contínuos. Em virtude desses e outros dados, é possível notar que, embora no plano do dever-ser, no plano jurídico, não haja uma transcendência da pena da pessoa do culpado, socialmente essa personalidade da punição não é observada no ordenamento brasileiro.

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