O princípio da
pessoalidade (ou personalidade) da pena, previsto no art. 5º, XLV, da
Constituição Federal, dispõe que “nenhuma
pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a
decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos
sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio
transferido”. Destarte, compreende-se que a responsabilidade
[penal] é (ou deveria ser) individual, de modo que a culpabilidade é o fator
que determina a responsabilização criminal, e nada além dela; ninguém tem pena
imposta por fato causado por outrem, por fato alheio. Todavia, o dispositivo
permite a reparação (que não é sanção penal) do dano por terceiros no caso de
heranças, mas limitando-se ao patrimônio objeto de sucessão, na esfera civil.
É correto,
portanto, afirmar que há a observação desse dispositivo no ordenamento
brasileiro. Genericamente, resta de modo explícito que, em contraposição ao
direito pré-beccariano, no estado de polícia, a sanção estatal não se estende
para além daquele que infringiu o direito, mesmo que haja vínculo parental em
relação ao condenado – situação observada, por exemplo, no julgamento de Tiradentes, cuja extensão
penal também abrangia a família do mesmo, declarando-os infames e o confisco
dos bens –; desse modo, formal e juridicamente, não há, hodiernamente, de forma
direta, punição aos descendentes, aos companheiros, e nem pode haver por
determinação judicial – uma das conquistas mais expressivas para a dignidade e
justiça, “a
sanção penal não pode ser aplicada ou executada contra quem não seja o autor ou
partícipe do fato punível.” (Dotti, 2001, p. 65), em consonância com a teoria
da equivalência das condições (conditio
sine qua non). Essa posição do
Direito é a mais lógica, principalmente através da análise da perspectiva de
que “a pena é um medida de
caráter estritamente pessoal, em virtude de consistir numa ingerência
ressocializadora sobre o apenado”, segundo Zaffaroni e Pierangeli.
Além do princípio
da pessoalidade, que rege a seara penal e não há exceções na legislação em
relação ao dispositivo, é possível citar uma manifestação mais clara (e/ou
tentativa) de personalização, através do art. 50, §2º, do Código Penal, em que se trata sobre a
pena de multa, prevendo que o “desconto não deve
incidir sobre os recursos indispensáveis ao sustento do condenado e de sua
família”, de base
principiológica. E embora nem sempre haja previsão explícita, sempre está
presente nas relações penais. Para compensar esse problema, há até mesmo o
auxílio-reclusão, benefício para os dependentes do segurado do INSS, de modo a permitir
que haja a subsistência da família para se manter sem o condenado. A
possibilidade de visita íntima e amamentação de bebês também são
positivadas pelo direito brasileiro, de modo a que os respectivos companheiros
e as crianças não fiquem desamparados em suas respectivas relações com os
indivíduos condenados, reiterando o caráter da pessoalidade da pena em certo
aspecto, embora a última circunstância também seja uma questão controvertida e
delicada quando se trata desse assunto.
Em
contrapartida, o art. 50, do Código Penal, em si, pode ser observado sob
perspectiva adversa, pois o instituto da pena de multa tem sido controverso na
doutrina, no que concerne à conformidade e aos limites em relação à norma
constitucional que embasa esse debate. A previsão em seu § 1º é de que “a cobrança da multa pode efetuar-se mediante
desconto no vencimento ou salário do condenado [...]”, o que enseja a
discussão de que, mesmo com a vigência do parágrafo seguinte, determinando
certos limites para a aplicação, ainda haveria, por conseguinte de afetar a
renda do condenado, interferência na vida de terceiros – configurando uma
violação constitucional. O auxílio-reclusão, embora seja positivo, é claramente
muito estrito e específico, pois está limitado a uma quantidade específica e
apenas aos segurados do INSS por, pelo menos, 18 anos.
No
que se refere ao que não é observado na ordem jurídica brasileira sobre a
personalização das penas, além da característica econômica supracitada, há os
aspectos sociais, que são predominantes no direito penal: a doutrina indica que
a realidade da penal afeta, socialmente, terceiros não culpados, principalmente
os seus familiares, mesmo que, juridicamente, essa situação tente ser
contornada – a Lei de Execução Penal (7.210/84), prevê que “art. 23 - Incumbe ao
serviço de assistência social: [...] VII - orientar e amparar, quando
necessário, a família do preso, do internado e da vítima.”. É entendimento de que, apesar dessa atribuição, não há a
orientação devida para os parentes do condenado por sanção penal.
Tal
como se pode observar, tanto a doutrina quanto o documentário demonstram que há
profunda estigmatização para a família do condenado, principalmente na
perspectiva das mães e mulheres. Além disso, a própria tentativa de interação
com os presos – a visita –, que também visa a ressocialização, está imbuída de
um vasto número de penalizações para
os familiares, para os visitantes em geral, o que demonstra um rompimento da
base principiológica, como: a burocracia
institucionalizada de modo extensamente negativo, impedindo que familiares
distantes, normalmente dos interiores dos respectivos Estados, possam
visitá-los – condição também atrelada à falta de informação e/ou organização
dos próprios presídios, aliada ainda ao panorama socioeconômico; a revista vexatória, revista íntima que é
realizada em mulheres – idosas, adultas ou crianças – para impedir a entrada de
drogas e/ou outros itens vetados, devendo ficar nuas, saltarem ou agacharem, e
que atenta à dignidade humana e a intimidade, sendo então proibidos – e, em
determinados casos, ainda assim praticados – por alguns dispositivos, sem norma
que o permita; a quantidade enorme de filas
as quais se submetem os visitantes; os “acampamentos” do lado externo prisional, de mulheres e crianças, à
espera do horário de entrada, durante uma noite inteira, expondo-se ao clima,
aos perigos urbanos e a diversos animais – baratas, cobras, cachorros, gatos –,
deitados no chão e sem infraestrutura básica para alimentação e higiene; a
humilhação da exposição das
circunstâncias perante as quais se realizam as visitas íntimas, fora o tempo
reduzido; a posição inferior que
esposas e mães as quais são reduzidas na sociedade, pela imagem do companheiro
ou filho condenado, sendo, então, parentes de “bandido” – preconceito, discriminação com mulheres que não estão relacionadas
a qualquer crime; a condição psicológica
afetada em decorrência da imagem atribuída pela sociedade a elas, de
sofrimento, vergonha e tristeza contínuos. Em virtude desses e outros dados, é possível
notar que, embora no plano do dever-ser,
no plano jurídico, não haja uma transcendência da pena da pessoa do
culpado, socialmente essa personalidade da punição não é observada no
ordenamento brasileiro.
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