domingo, 20 de novembro de 2016

Documentário "O Prisioneiro da Grade de Ferro" e as finalidades da pena



O dever-ser ­jurídico apresenta-se mais uma vez como pura expectativa de concretização do arcabouço jurídico-normativo no Brasil. Na análise da relação entre a pena privativa de liberdade e as finalidades da punição no ordenamento jurídico brasileiro, observar-se-á, explicitamente, uma incompatibilidade entre as premissas do legislador e da legislação, especificamente ao que se refere à Lei de Execução Penal (LEP) – Lei Federal nº 7.210/84 –, e a situação concreta dos estabelecimentos penitenciários. 

Destarte, embora previsto em lei que a execução penal tenha como finalidade “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado”, no art. 1º da Lei de Execução Penal, o objetivo permanece como não alcançado, uma vez que a realidade do preso é, visivelmente, distinta e diametralmente oposta ao que se propõe juridicamente. Tal como se inferiria a partir de uma observação – superficial ou profunda – das condições sub-humanas de aprisionamento, e também a partir dos próprios relatos dos reeducandos e funcionários do sistema prisional, há uma “má gestão [...], inabilidade administrativa e técnica.”, como explicita Alvino Augusto de Sá (2007, p. 113), e evidente despreocupação política, jurídica e social com o aprisionado, e com o próprio sistema em si, condenando não apenas a ressocialização, como também o inserindo ainda mais desastrosamente no processo de prisionização, degradando-o. De forma genérica, pode-se afirmar que não existe nenhum elemento positivo que emane da sociedade para o cárcere; pelo contrário, há um antagonismo declarado e um confronto constante, face às relações estabelecidas com aqueles que cometeram delitos e passam, então, a ser marginalizados – em uma proporção maior ainda às circunstâncias que já marginalizavam a maioria deles e os induziram a cometer delitos.

Assim como a maior parte do ordenamento jurídico, as leis pretendem, mas não se efetivam, em decorrência da deficiência de uma cooperação entre os sistemas necessários para uma integração positiva e profícua. Vemos a superpopulação carcerária, a debilidade para implementação efetiva do regime progressivo – com todo o “jeitinho brasileiro” para remendar a inabilidade do Estado no cumprimento de suas propostas jurídicas –, falta de infraestrutura adequada e de preparo profissional dos envolvidos, fora a ausência dos recursos materiais e humanos que atingem grande parte dos serviços públicos nacionais. 

Além disso, a perspectiva sobre o cárcere é ainda mais debilitada com a reiterada demonização de seus “habitantes” e através da veiculação de informações equivocadas, como atualmente somos capazes de apreender quando lemos notícias sobre “indultos” de datas comemorativas – a saidinha.

Esse panorama geral tende a criar as quadrilhas organizadas dentro da prisão. O próprio documentário demonstra que, como consequência da rejeição e da pouca importância da sociedade para com os apenados, a organização desses “partidos” se consolidou como fulcral para que estes recebessem a atenção necessária, e suas condições analisadas de forma mais humana, de modo que o apoio pode ser considerado elevado entre os encarcerados, desafiando, então, a autoridade do governo e problematizando a pena imputada.

Desse modo, a crítica sobre a pena privativa de liberdade com a pressuposta finalidade de eficácia na ressocialização do indivíduo e, por conseguinte, prevenção do cometimento de novos delitos, é constante, visto que, embora seu potencial frequentemente não alcance os efeitos desejados – mas contrários, advertidos pela criminologia crítica na dificuldade de reinserção social profissional, familiar e comunitária. A regressão, infantilização, perda de capacidade psíquica, dependência social, pobreza intelectual, dificuldade de estabelecer relacionamentos incluem vários dos efeitos, que estão diametralmente opostos à concepção da LEP; embora o Código Penal defina que à pena cabe a retribuição e prevenção, parece que apenas o primeiro vem sendo aplicado intensa e reiteradamente, enquanto ao segundo cabe a inexistência, e/ou a substituição por “provocação” de delitos no futuro.

Portanto, há uma verdadeira necessidade de reavaliação e reformulação da política criminal e do sistema prisional como um todo. As deficiências são tão visíveis quanto uma fratura exposta – ou qualquer uma das muitas doenças que acometem aos presos do Carandiru, por exemplo, sem tratamentos e com perspectiva de piora e sequelas permanentes –; entretanto, podem e devem ser corrigidas, tanto pela sociedade, quanto pelo Estado. A primeira deve analisar o cárcere como uma parte de si, e não alheia, promovendo a reintegração social do preso com uma aproximação entre ambos, para que se reconheçam num mesmo processo, atenuando os efeitos da prisionização. O Estado deve agir com maior interesse em suas políticas para atender às necessidades do encarceramento e tornar os parâmetros definidos juridicamente pela Lei de Execução Penal em algo sólido, concreto, palpável, de modo que os indivíduos não sejam reincidentes e tornem às penitenciárias, promovendo, também, a relação sociedade-preso.

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