domingo, 20 de novembro de 2016

Função do Direito, "O direito na sociedade", NIKLAS LUHMANN



            O ensaio a seguir refere-se ao terceiro capítulo da obra “O direito da sociedade”, de Niklas Luhmann, cujo objetivo fundamental reside na compreensão de qual seria a função do [sistema de] direito, enquanto (sub)sistema (social) compreendido no interior do sistema da sociedade. O direito, tal qual a sociedade, é um sistema autopoiético, operativamente fechado – suas operações são traduzidas dentro de seu próprio código binário, lícito-ilícito – e cognitivamente aberto – isto é, pode sofrer ou causar irritações em relação a outros sistemas –, além de possuir dois ambientes: o ambiente intrassocial, o todo estruturado comunicativamente, toda comunicação não jurídica, mesmo que não efetivamente estruturada; e o extrassocial, o que não é comunicação, como homem (sistema psíquico, psique). Através das operações comunicativas, em seu código específico, a função do direito, então discutida, é realizada: a estabilização das expectativas normativas, imunes às frustrações.
            A argumentação de Luhmann, construída a partir da diferenciação funcional do sistema, é de uma análise específica da função do direito, do que essa poderia se constituir. O ponto de partida é uma posição diametralmente oposta às perspectivas já apresentadas por outros teóricos, que indicaram o controle ou integração social, como Parsons, e criticadas por estudiosos – como desvantagens dessa abordagem, o autor cita “não reconhecer as peculiaridades do direito” e uma diferenciação que só é observada no plano das organizações. Da mesma forma acerca da determinação dessa função como solução de conflitos, pois já existem equivalentes funcionais em outros sistemas, e também quanto a funções muito amplas, para, depois, constatar-lhe falhas e/ou limitações.
            Essa ideia de vinculação temporal existente na comunicação jurídica apresenta aspectos que são comuns à linguagem, no geral. Por exemplo, por meio do uso reiterado da linguagem na sociedade há a criação de sentidos que não podem, em decorrência desse procedimento, ser rejeitados; a condensação no contexto que lhe é próprio e a confirmação do significado com a aplicação correta em outros contextos são responsáveis pela gênese de sentido, segundo Luhmann. Assim, esses significados apresentam custos sociais, que têm seus efeitos em sociedade, decidindo em prol de uma parte e condenando a outra, “ainda que [...] não esteja relacionado com sua própria vida ou propriedade, mas com as dos demais”, através da simbologia do dever, para que se conquiste a almejada segurança ante a incerteza inerente do futuro. Faz parte desse mesmo processo o fechamento operativo do sistema jurídico, que o permite ser autônomo em relação à sociedade e também maior consistência e consequente estabilidade em suas normas, em comparação com normatividades baseadas na percepção empírica do normal, natural ou ético.
            Conduz a linha de pensamento luhmanniana a diferença entre os conceitos de função e atuação. Enquanto o primeiro é caracterizado como uma ideia específica, o último é constantemente analisado sob a ótica da contribuição proporcionada aos/nos outros sistemas – enquanto resolução de conflitos, como por exemplo – e, dotado de numerosos equivalentes funcionais, não o é. Assim como já fora apontado, Luhmann atribui a única função do direito a estabilização das expectativas normativas – não executável por nenhum outro sistema –, em termos de vinculação temporal. As expectativas são tidas como uma ligação entre a comunicação do presente e do futuro, condicionando e orientando essa comunicação para e do futuro, sendo um aspecto temporal da própria comunicação, e não parte da consciência individual.
            No que concerne às expectativas, há ponderações do autor sobre sua manutenção. Mesmo quando perante determinadas e eventuais frustrações no sistema jurídico, a complexidade e a densidade da comunicação legal permite que as expectativas se mantenham, ainda que graus elevados de decepção se evidenciem. Desse modo, o descumprimento de prescrições legais não encerra, mas reitera as expectativas de punição; e até nessas condições, quando a punição não acontece, há estabilidade das expectativas – que residem nas normas que disciplinam essas condutas. Há tanto a expectativa específica quanto a geral de cumprimento do direito; todavia, há um rompimento na concepção de vinculação temporal e expectativa quando esta última não é mais normativa e, por conseguinte, a função do direito não é mais atendida. Destarte, há uma distinção entre expectativas cognitivas – às quais se adapta, uma vez analisada a frustração da mesma – e normativas – não adaptativas, e, por decorrência, não “decepcionáveis”, pois cabe ao direito estabilizá-las, através dos mecanismos jurídicos. A manutenção dessas expectativas é feita pelo direito no plano temporal (por meio da normatização), social (com a institucionalização, como contratos e procedimentos) e material (especificação de sentido, em programas condicionais).
            Embora a função do direito colabore para a resolução de contradições e a regulação de comportamentos, n’O direito da sociedade estes são classificados como exemplos de atuação do direito, e não a sua função de fato. No que concerne ao “comando de conduta”, há um sem-número de outros equivalentes funcionais que direcionam o comportamento humano, de modo que essa não pode ser considerada uma função específica e/ou diferenciada do sistema jurídico no interior da sociedade; o mesmo pode ser considerado quanto à solução de litígios. A compreensão do sistema do direito como um sistema que garante a manutenção das expectativas normativas, através da sua “clausura operacional”, clarifica a discrepância existente, de fato, entre a sua função e suas possíveis formas de atuação.

            Portanto, nesse capítulo o autor demonstra, de modo original, no contexto de sua teoria dos sistemas sociais, o que é a função do direito, como aspecto distintivo desse subsistema social perante os outros (sub)sistemas. Desse modo, rompe não apenas com as teorias precedentes e/ou aquelas que o influenciaram a elaborar sua tese, como a de Parsons, como também se utiliza de um paradigma da comunicação e da dimensão temporal para caracterizar o sistema jurídico. Além disso, elucida – em um momento de forte ocidentalcentrismo/eurocentrismo, pelo qual Luhmann é usualmente criticado por outros autoreso direito como mecanismo relevante para o desenvolvimento da sociedade moderna [na Europa], principalmente por esta se caracterizar pela efemeridade, imprevisibilidade, incerteza de seu futuro, funcionando o sistema, por sua vez, como uma garantia de que as expectativas normativas manter-se-ão no tempo. Por fim, após essa breve análise histórica, Niklas afirma a necessidade de uma “teoria de evolução” feita de modo mais complexo, ao que ele dará continuidade em outro capítulo, assim como atesta a insuficiência do conceito da função para asseverar o direito como sistema autopoiético e capaz de se reproduzir, em seu fechamento operativo; para tanto, as estruturas evolucionais singulares são requeridas, e esse debate prosseguirá na parte seguinte da obra.

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