O ensaio a seguir refere-se
ao terceiro capítulo da obra “O direito
da sociedade”, de Niklas Luhmann, cujo objetivo fundamental reside na
compreensão de qual seria a função do [sistema de] direito, enquanto
(sub)sistema (social) compreendido no interior do sistema da sociedade. O
direito, tal qual a sociedade, é um sistema autopoiético, operativamente
fechado – suas operações são traduzidas dentro de seu próprio código binário,
lícito-ilícito – e cognitivamente aberto – isto é, pode sofrer ou causar
irritações em relação a outros sistemas –, além de possuir dois ambientes: o ambiente
intrassocial, o todo estruturado comunicativamente, toda comunicação não
jurídica, mesmo que não efetivamente estruturada; e o extrassocial, o que não é
comunicação, como homem (sistema psíquico, psique). Através das operações
comunicativas, em seu código específico, a função do direito, então discutida,
é realizada: a estabilização das expectativas normativas, imunes às frustrações.
A argumentação de Luhmann, construída a partir da
diferenciação funcional do sistema, é de uma análise específica da função do
direito, do que essa poderia se constituir. O ponto de partida é uma posição
diametralmente oposta às perspectivas já apresentadas por outros teóricos, que indicaram
o controle ou integração social, como Parsons, e criticadas por estudiosos –
como desvantagens dessa abordagem, o autor cita “não reconhecer as
peculiaridades do direito” e uma diferenciação que só é observada no plano das
organizações. Da mesma forma acerca da determinação dessa função como solução
de conflitos, pois já existem equivalentes funcionais em outros sistemas, e também
quanto a funções muito amplas, para, depois, constatar-lhe falhas e/ou
limitações.
Essa ideia de vinculação temporal existente na
comunicação jurídica apresenta aspectos que são comuns à linguagem, no geral.
Por exemplo, por meio do uso reiterado da linguagem na sociedade há a criação
de sentidos que não podem, em decorrência desse procedimento, ser rejeitados; a
condensação no contexto que lhe é próprio e a confirmação do significado com a
aplicação correta em outros contextos são responsáveis pela gênese de sentido, segundo Luhmann.
Assim, esses significados apresentam custos sociais, que têm seus efeitos em
sociedade, decidindo em prol de uma parte e condenando a outra, “ainda que
[...] não esteja relacionado com sua própria vida ou propriedade, mas com as
dos demais”, através da simbologia do dever, para que se conquiste a almejada
segurança ante a incerteza inerente do futuro. Faz parte desse mesmo processo o
fechamento operativo do sistema jurídico, que o permite ser autônomo em relação
à sociedade e também maior consistência e consequente estabilidade em suas
normas, em comparação com normatividades baseadas na percepção empírica do
normal, natural ou ético.
Conduz a linha de pensamento luhmanniana a diferença
entre os conceitos de função e atuação. Enquanto o primeiro é
caracterizado como uma ideia específica, o último é constantemente analisado
sob a ótica da contribuição proporcionada aos/nos outros sistemas – enquanto resolução
de conflitos, como por exemplo – e, dotado de numerosos equivalentes
funcionais, não o é. Assim como já fora apontado, Luhmann atribui a única
função do direito a estabilização das expectativas normativas – não executável
por nenhum outro sistema –, em termos de vinculação temporal. As expectativas
são tidas como uma ligação entre a comunicação do presente e do futuro,
condicionando e orientando essa comunicação para e do futuro, sendo um aspecto
temporal da própria comunicação, e não parte da consciência individual.
No que concerne às expectativas, há ponderações do autor
sobre sua manutenção. Mesmo quando perante determinadas e eventuais frustrações
no sistema jurídico, a complexidade e a densidade da comunicação legal permite
que as expectativas se mantenham, ainda que graus elevados de decepção se
evidenciem. Desse modo, o descumprimento de prescrições legais não encerra, mas
reitera as expectativas de punição; e até nessas condições, quando a punição
não acontece, há estabilidade das expectativas – que residem nas normas que
disciplinam essas condutas. Há tanto a expectativa específica quanto a geral de
cumprimento do direito; todavia, há um rompimento na concepção de vinculação
temporal e expectativa quando esta última não é mais normativa e, por
conseguinte, a função do direito não é mais atendida. Destarte, há uma
distinção entre expectativas cognitivas – às quais se adapta, uma vez analisada
a frustração da mesma – e normativas – não adaptativas, e, por decorrência, não
“decepcionáveis”, pois cabe ao direito estabilizá-las, através dos mecanismos
jurídicos. A manutenção dessas expectativas é feita pelo direito no plano temporal (por meio da normatização), social (com a institucionalização, como
contratos e procedimentos) e material (especificação
de sentido, em programas condicionais).
Embora a função do direito colabore para a resolução de
contradições e a regulação de comportamentos, n’O direito da sociedade estes são classificados como exemplos de
atuação do direito, e não a sua função de fato. No que concerne ao “comando de
conduta”, há um sem-número de outros equivalentes funcionais que direcionam o
comportamento humano, de modo que essa não pode ser considerada uma função
específica e/ou diferenciada do sistema jurídico no interior da sociedade; o
mesmo pode ser considerado quanto à solução de litígios. A compreensão do
sistema do direito como um sistema que garante a manutenção das expectativas
normativas, através da sua “clausura operacional”, clarifica a discrepância
existente, de fato, entre a sua função e suas possíveis formas de atuação.
Portanto, nesse capítulo o autor demonstra, de modo
original, no contexto de sua teoria dos sistemas sociais, o que é a função do
direito, como aspecto distintivo desse subsistema social perante os outros
(sub)sistemas. Desse modo, rompe não apenas com as teorias precedentes e/ou
aquelas que o influenciaram a elaborar sua tese, como a de Parsons, como também
se utiliza de um paradigma da comunicação e da dimensão temporal para
caracterizar o sistema jurídico. Além disso, elucida – em um momento de forte ocidentalcentrismo/eurocentrismo, pelo
qual Luhmann é usualmente criticado por outros autores – o direito como mecanismo relevante para o desenvolvimento da
sociedade moderna [na Europa], principalmente por esta se caracterizar pela
efemeridade, imprevisibilidade, incerteza de seu futuro, funcionando o sistema,
por sua vez, como uma garantia de que as expectativas normativas manter-se-ão
no tempo. Por fim, após essa breve análise histórica, Niklas afirma a
necessidade de uma “teoria de evolução” feita de modo mais complexo, ao que ele
dará continuidade em outro capítulo, assim como atesta a insuficiência do
conceito da função para asseverar o direito como sistema autopoiético e capaz
de se reproduzir, em seu fechamento operativo; para tanto, as estruturas
evolucionais singulares são requeridas, e esse debate prosseguirá na parte
seguinte da obra.
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