O ensaio a seguir refere-se
ao capítulo “Direito e ciência” da obra de HANS KELSEN, que discorre acerca de
determinados itens considerados relevantes para a compreensão da situação da
ciência jurídica, segundo a Teoria Pura do Direito, principalmente quanto à sua
classificação, ao princípio ordenador normativo e ao conteúdo das normas
jurídicas.
O autor inicia elucidando que, ao tomar-se o Direito como
objeto da ciência jurídica, também as normas jurídicas são consideradas como
objeto da mesma ciência, assim como a conduta humana – quando determinada pelas
normas, como pressuposto ou consequência, ou seja, como conteúdo das normas; em
semelhante situação estão as relações inter-humanas, enquanto constituídas
através de normas. A apreensão jurídica como objeto da ciência do Direito,
portanto, se dá como norma ou como conteúdo de uma, segundo a determinação de
uma norma jurídica.
A seguir, KELSEN elucida a distinção entre proposições
jurídicas – juízos hipotéticos, instruções para intervenção de determinadas
consequências verificadas certas circunstâncias, apresentando caráter de veracidade
– e normas jurídicas – comandos, imperativos, constituindo permissões e
atribuições de poder ou competência, mas não ensinamentos; enquanto normas de
dever-ser, apresentam caráter de validade. Apresenta ainda a utilização de
princípios lógicos, como o da não-contradição e da concludência do raciocínio,
como aplicáveis às normas jurídicas através das proposições jurídicas
responsáveis pela descrição delas.
Na prossecução de sua exposição, o jurista, na
compreensão do Direito como ordem normativa e da ciência jurídica restrita ao
conhecimento e à descrição das normas jurídicas, contrapõe o primeiro à
natureza e a última às outras ciências naturais, regidas pela lei da
causalidade. Segundo ele, é justamente a utilização da lei causal em uma
ciência [natural] que lhe atribui determinada essência e a distingue de uma
ciência social, além de outros fatores como da sociedade como ordem normativa,
do Direito como fenômeno social e de sua apreensão enquanto objeto normativo,
com a aplicação de um princípio diverso: o da imputação. Embora análogo ao
princípio da causalidade, o vínculo gerado por aquele estabelece que, quando A
é, B deve ser, mesmo que efetivamente não se concretize, cuja afirmação não
pode ser dada pela ciência jurídica, pois caracterizaria uma contradição; é,
portanto, nas proposições jurídicas (lei jurídica), uma norma estabelecida por
uma autoridade, pela vontade, e não pela natureza, independente de qualquer
interferência, tal como em uma lei natural; o dever-ser jurídico expressa, então, a possibilidade de execução de
determinada consequência, atrelando uma conduta humana a essa consequência.
Ainda é apresentado por KELSEN certa analogia e
cronologia entre os princípios supracitados e o princípio retributivo, presente
no pensamento dos homens primitivos; este é demonstrado análogo ao da
imputação, ao exercer função de reciprocidade entre a conduta dos homens e uma
pena/recompensa [da natureza] e pela investigação do responsável e dos
interesses afetados; e como anterior ao da causalidade, o qual teria gerado, no
momento em que há a emancipação da interpretação social da natureza – a partir
de então criada (explicada) pela
ciência.
Pretendendo singularizar a ciência social normativa, a
obra discorre sobre sua especificidade em relação às ciências sociais causais –
essa categoria significa, portanto, reconhecer a explicação causal presente nas
últimas, cuja distinção em relação à ciência natural reside na interpretação da
conduta humana segundo a imputação; as ciências sociais contrapõem-se à
realidade natural através dos valores determinados por normas positivas, tendo
a realidade social, não a natural, como objeto –, que possui como objetivo a
compreensão da sociedade humana, ponto a partir do qual se inicia uma discussão
sobre o discernimento dos limites dos princípios de causalidade e imputação.
Como um prolongamento do debate exposto, KELSEN assinala
o problema da percepção da concepção de liberdade, indicando uma conexão entre
ambos a partir da ideia de um ponto terminal. A conclusão acerca da análise
disposta é de que é a determinabilidade causal da vontade que torna possível a
imputação, e não a liberdade, através de uma instituição da ordem
jurídico-normativa que reconhece a causalidade da determinação da vontade
humana. Sua liberdade, portanto, é resultado da possibilidade de imputação
sobre o homem, de sua conduta ser considerada o ponto terminal.
Por fim, o autor elucida
críticas prevalecentes quanto à negação da categoria do dever-ser – ao que
afirma uma subtração do sentido existente nas afirmações do Direito ao retirar
da imputação da norma, do dever-ser, o seu significado – e quanto ao Direito
como ideologia, ao que replica com a Teoria Pura do Direito como anti-ideológica
(no segundo sentido da palavra), radicalmente realista, como a verdadeira
ciência do Direito, sem pretensão de valoração ou de atender aos interesses
particulares.
Em suma, o texto expõe o
delineamento do ideal de ciência pura proposto pelo jurista austríaco, caracterizando-se
um rompimento com os modelos teóricos propostos até então e apresentando uma
ciência jurídica autônoma e pretensamente neutra de intervenções alheias ao seu
objeto, de cunho político, moral, religioso, social ou de outra ordem.
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