domingo, 12 de junho de 2016

O que é Justiça?, Item: Causalidade e Imputação - HANS KELSEN; Direito e Poder, Capítulo 2: Ser e dever ser na ciência jurídica - NORBERTO BOBBIO



            O ensaio a seguir refere-se à exposição de concepções a dualidade do ser e do dever ser no âmbito da discussão referente ao positivismo jurídico e o conceito da própria ciência normativa como núcleo do debate formado. KELSEN desenvolve a sua Teoria Pura do Direito, debruçando-se sobre os princípios que regem ciências sociais e naturais, ao passo que BOBBIO apresenta distintas significações à ciência normativa, contextualizando uma análise quanto aos sentidos a ela atribuídos. 
KELSEN torna a pautar as principais acepções apresentadas na Teoria Pura do Direito. A primeira proposição está relacionada à distinção estabelecida entre o princípio de ciências sociais e naturais. A exposição consiste em apresentar que o princípio utilizado por cada ciência atribui a ela determinada essência; tratando das ciências sociais em geral, indica que aquelas que se utilizam – e, portanto, tomam a conduta humana como elemento da natureza – do princípio da causalidade, mantém essência equivalente a das ciências naturais. Uma ciência normativa, tal qual o Direito, aplica um princípio distinto, o da imputação.


            Para clarificar a concepção do que é esse princípio de imputação, KELSEN revela uma ligação distinta, proveniente de um ato humano criador de Direito: a interligação entre pressuposto e consequência apresenta um significado distinto, evidenciado na concepção do dever ser contido na norma. As sanções não são decorrentes (causalmente) do delito; elas são imputadas ao delito, de acordo com o que fora fixado pela ordem jurídica, em determinada norma. A imputação, na ordem normativa, significa uma responsabilização da conduta humana, que tem sua origem no princípio retributivo das civilizações primitivas.
            A condição de liberdade do homem também é ressaltada como um dos objetos da obra kelseniana. Como parte da natureza, a conduta humana não é considerada livre, pois, como fato natural, é decorrente e determinada por outros fatos, como causa e efeito. Na ordem normativa, é encontrada a liberdade humana – apenas possível por encontrar-se o ponto terminal da imputação na conduta a ser aprovada ou reprovada, que tem imputada a si uma consequência, uma recompensa, penitência ou punição; o homem, portanto, “é livre porque se lhe imputa algo”. KELSEN afirma ainda que não há contradição entre causalidade e imputação, pois são dois esquemas de interpretação distintos; até mesmo na elaboração de uma ordem imputativa, a determinabilidade causal da vontade humana é considerada, visto que, através da representação das normas, se espera causar um ato de vontade para a conduta prescrita.
            Por fim, ressaltam-se as circunstâncias em que normas têm outros fatos como conteúdo e quando são consideradas hipotéticas. No primeiro caso, explica-se que circunstâncias ou fatos externos também estão envolvidos como pressuposto ou consequência (como a morte, ou a demência). No segundo, normas omissivas hipotéticas são criticadas pela não existência de um pressuposto, ou seja, são proibições sem exceções – o que KELSEN não admite, pois “ordens positivas têm de estatuir condições”.
Em Direito e Poder, BOBBIO apresenta quais são as acepções para “ciência normativa” – duas tradicionalmente adotadas, e a terceira proposta pelo modelo kelseniano; em relação aos dois sentidos tradicionais – o sentido fraco como “tem a ver com normas”, e o sentido forte como “põe, propõe ou impõe normas” –, a jurisprudência pode ser considerada como normativa. A visão kelseniana é de uma teoria normativa que “considera a realidade social mediante um sistema normativo”, uma terceira razão pela qual a ciência jurídica é caracterizada como tal; sua ciência é descritiva e normativa, isto é, descreve (não dá diretrizes) aquilo que deve ser (normas, não fatos).
            São apresentados modelos de ciência normativa baseados em duas dicotomias: normativo-explicativo e descritivo-prescritivo. Essas abstrações apenas se remetem à metajurisprudência – reflexão crítica sobre a jurisprudência –, que busca encontrar modelos mais evoluídos de outras disciplinas para aplicação à obra jurisprudencial. Questiona-se ainda a metajurisprudência como normativa quanto à função, isto é, se “não é tanto descrever [...] quanto prescrever” aquilo que os juristas devem fazer. Ademais, enquanto a jurisprudência incide diretamente no sistema jurídico, a metajurisprudência se apresenta indiretamente sobre o mesmo sistema, através da influência à primeira, podendo estas, entretanto, convergir ou divergir em suas tendências, embora ambas sejam decorrentes do contexto histórico.
            Analisam-se, em seguida, os três significados de jurisprudência como “ciência normativa”. Quanto ao primeiro sentido, a rigidez consiste no fato de que, além de ‘ter a ver com normas’, o jurista também recorre a um material extranormativo, além de norma ter uma abrangência bem maior do que pressupõe seu uso original. Em relação à segunda acepção, elaborada por KELSEN, a exprobração reside na concepção do Sollen – ROSS aponta que há apenas asserções ou normas de dever-ser, enquanto a ideia kelseniana é de que proposições são asserções, mas de natureza especial; há um subentendimento ou desconhecimento de intermediações desse conceito –, ao que se conclui a existência de Sollen descritivo distinto de prescritivo. Por último, analisa-se a função social do jurista, que, ao contrário do que pretende a metajurisprudência prescritiva, manifesta uma análise de determinados fatos pelo operador em circunstâncias especiais, sendo evidenciada, ainda, uma distinção entre linguagem descritiva e prescritiva que remete a uma conclusão puramente semântica na terceira definição. A conclusão do autor é de que a ideia de uma metajurisprudência descritiva, e não ideológica, como propunha KELSEN, é constatada como uma tendência no estado atual da ciência jurídica, da qual decorre uma jurisprudência mais progressista ou inovadora, resultando em modelos que não consideram as técnicas, mas os resultados desejados.
            Em suma, ambos os textos apresentam um diálogo direto entre si. A famosa obra de KELSEN, que expõe as principais ideias contidas na Teoria Pura do Direito, demonstra um grande passo na ruptura de paradigmas estabelecidos até então na área da ciência do Direito, sob a concepção da ciência normativa. Tal pioneirismo é, inclusive, apontado por BOBBIO, que destaca, ademais, as considerações do austríaco sobre a questão dos problemas jurisprudenciais, nunca realizada anteriormente; apresenta, todavia, críticas que são tecidas e decorrentes, sobretudo, pela confusão gerada a partir da inovação de sua teoria, independente de qualquer valoração, demonstrando – e não prescrevendo – as tendências da (meta)jurisprudência no período pós-crise do positivismo jurídico.

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