O ensaio a seguir refere-se à exposição de concepções a
dualidade do ser e do dever ser no âmbito da discussão referente ao positivismo
jurídico e o conceito da própria ciência normativa como núcleo do debate
formado. KELSEN desenvolve a sua Teoria Pura do Direito, debruçando-se sobre os
princípios que regem ciências sociais e naturais, ao passo que BOBBIO apresenta
distintas significações à ciência normativa, contextualizando uma análise
quanto aos sentidos a ela atribuídos.
KELSEN
torna a pautar as principais acepções apresentadas na Teoria Pura do Direito. A
primeira proposição está relacionada à distinção estabelecida entre o princípio
de ciências sociais e naturais. A exposição consiste em apresentar que o
princípio utilizado por cada ciência atribui a ela determinada essência;
tratando das ciências sociais em geral, indica que aquelas que se utilizam – e,
portanto, tomam a conduta humana como elemento da natureza – do princípio da
causalidade, mantém essência equivalente a das ciências naturais. Uma ciência normativa,
tal qual o Direito, aplica um princípio distinto, o da imputação.
Para clarificar a concepção do que é
esse princípio de imputação, KELSEN revela uma ligação distinta, proveniente de
um ato humano criador de Direito: a interligação entre pressuposto e
consequência apresenta um significado distinto, evidenciado na concepção do dever ser contido na norma. As sanções não
são decorrentes (causalmente) do delito; elas são imputadas ao delito, de
acordo com o que fora fixado pela ordem jurídica, em determinada norma. A
imputação, na ordem normativa, significa uma responsabilização da conduta
humana, que tem sua origem no princípio retributivo das civilizações
primitivas.
A condição de liberdade do homem
também é ressaltada como um dos objetos da obra kelseniana. Como parte da
natureza, a conduta humana não é considerada livre, pois, como fato natural, é
decorrente e determinada por outros fatos, como causa e efeito. Na ordem
normativa, é encontrada a liberdade humana – apenas possível por encontrar-se o
ponto terminal da imputação na conduta a ser aprovada ou reprovada, que tem
imputada a si uma consequência, uma recompensa, penitência ou punição; o homem,
portanto, “é livre porque se lhe imputa algo”. KELSEN afirma ainda que não há
contradição entre causalidade e imputação, pois são dois esquemas de
interpretação distintos; até mesmo na elaboração de uma ordem imputativa, a
determinabilidade causal da vontade humana é considerada, visto que, através da
representação das normas, se espera causar um ato de vontade para a conduta
prescrita.
Por fim, ressaltam-se as
circunstâncias em que normas têm outros fatos como conteúdo e quando são
consideradas hipotéticas. No primeiro caso, explica-se que circunstâncias ou
fatos externos também estão envolvidos como pressuposto ou consequência (como a
morte, ou a demência). No segundo, normas omissivas hipotéticas são criticadas
pela não existência de um pressuposto, ou seja, são proibições sem exceções – o
que KELSEN não admite, pois “ordens positivas têm de estatuir condições”.
Em
Direito e Poder, BOBBIO apresenta
quais são as acepções para “ciência normativa” – duas tradicionalmente
adotadas, e a terceira proposta pelo modelo kelseniano; em relação aos dois
sentidos tradicionais – o sentido fraco como “tem a ver com normas”, e o sentido
forte como “põe, propõe ou impõe normas” –, a jurisprudência pode ser
considerada como normativa. A visão kelseniana é de uma teoria normativa que
“considera a realidade social mediante um sistema normativo”, uma terceira
razão pela qual a ciência jurídica é caracterizada como tal; sua ciência é
descritiva e normativa, isto é, descreve (não dá diretrizes) aquilo que deve
ser (normas, não fatos).
São apresentados modelos de ciência
normativa baseados em duas dicotomias: normativo-explicativo e
descritivo-prescritivo. Essas abstrações apenas se remetem à metajurisprudência
– reflexão crítica sobre a jurisprudência –, que busca encontrar modelos mais
evoluídos de outras disciplinas para aplicação à obra jurisprudencial. Questiona-se
ainda a metajurisprudência como normativa quanto à função, isto é, se “não é
tanto descrever [...] quanto prescrever” aquilo que os juristas devem fazer.
Ademais, enquanto a jurisprudência incide diretamente no sistema jurídico, a
metajurisprudência se apresenta indiretamente sobre o mesmo sistema, através da
influência à primeira, podendo estas, entretanto, convergir ou divergir em suas
tendências, embora ambas sejam decorrentes do contexto histórico.
Analisam-se, em seguida, os três
significados de jurisprudência como “ciência normativa”. Quanto ao primeiro
sentido, a rigidez consiste no fato de que, além de ‘ter a ver com normas’, o
jurista também recorre a um material extranormativo, além de norma ter uma abrangência bem maior do
que pressupõe seu uso original. Em relação à segunda acepção, elaborada por
KELSEN, a exprobração reside na concepção do Sollen – ROSS aponta que há apenas asserções ou normas de
dever-ser, enquanto a ideia kelseniana é de que proposições são asserções, mas
de natureza especial; há um subentendimento ou desconhecimento de intermediações
desse conceito –, ao que se conclui a existência de Sollen descritivo distinto de prescritivo. Por último, analisa-se a
função social do jurista, que, ao contrário do que pretende a
metajurisprudência prescritiva, manifesta uma análise de determinados fatos
pelo operador em circunstâncias especiais, sendo evidenciada, ainda, uma
distinção entre linguagem descritiva e prescritiva que remete a uma conclusão
puramente semântica na terceira definição. A conclusão do autor é de que a
ideia de uma metajurisprudência descritiva, e não ideológica, como propunha
KELSEN, é constatada como uma tendência no estado atual da ciência jurídica, da
qual decorre uma jurisprudência mais progressista ou inovadora, resultando em
modelos que não consideram as técnicas, mas os resultados desejados.
Em suma, ambos os textos apresentam um diálogo direto
entre si. A famosa obra de KELSEN, que expõe as principais ideias contidas na
Teoria Pura do Direito, demonstra um grande passo na ruptura de paradigmas
estabelecidos até então na área da ciência do Direito, sob a concepção da
ciência normativa. Tal pioneirismo é, inclusive, apontado por BOBBIO, que
destaca, ademais, as considerações do austríaco sobre a questão dos problemas
jurisprudenciais, nunca realizada anteriormente; apresenta, todavia, críticas que
são tecidas e decorrentes, sobretudo, pela confusão gerada a partir da inovação
de sua teoria, independente de qualquer valoração, demonstrando – e não prescrevendo – as tendências da
(meta)jurisprudência no período pós-crise do positivismo jurídico.
Nenhum comentário:
Postar um comentário