domingo, 20 de novembro de 2016

Livro "Descasos" e o sistema penal brasileiro



O artigo Razões históricas de um sistema penal cruel, de Cláudio do Prado Amaral, traz, em sua essência, a demonstração de como tem sido o posicionamento brasileiro, seja popular, seja político-jurídico, é de passividade em relação ao que classifica como “tragédia sistêmico-penal”, e que está frontalmente relacionada às condições subumanas de vida e mantimento no cárcere nacional e à formação tecnicista que é usualmente dada aos bacharéis.

O livro DesCasos traz uma compreensão da realidade brasileira e de seu ordenamento jurídico de imprescindibilidade tamanha não apenas para aqueles que demonstram interesse em seguir carreira jurídica, advocatícia ou não, criminal ou não; é um dado, uma referência da compreensão das mazelas, das falhas, das deficiências de todo o sistema penal brasileiro, que não pode ser entendido com base apenas na leitura do Código Civil, nem mesmo da doutrina ou da jurisprudência, dado que as maiores dificuldades não se encontram no conteúdo das legislações, mas no procedimento, na burocracia, na concepção dos juristas sobre a sociedade (subjetivamente, embora também considerando o modelo de sua formação), no preconceito racial, na pobreza. Recuperando Nilo Batista, em “Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro”, o sistema mantém os aspectos de seletividade, repressividade e estigmatização. E a obra de Alexandra Lebelson Szafir permite, através de uma observação do interior do próprio ambiente, que as feridas sejam expostas e escancaradas, denotando, profundamente, as diversas imperfeições a que se submetem os cidadãos brasileiros.

Em primeiro aspecto, está evidente como predomina, entre o colegiado de magistrados, um sentimento de superioridade sobre a sociedade remanescente, e uma ideologia formalística, arcaica, alienada, incongruente com a modernidade e com a maior parte dos valores e direitos humanos que hoje preponderam. Há um claro desvio da função primordial – o julgamento idôneo e justo dos casos apresentados –, apresentando desinteresse, tanto pelos direitos básicos – que, enquanto juristas, deveriam prezar e defender a todo custo –, quanto pelos próprios personagens que também compõem o sistema judiciário, sejam os presos, sejam guardas, advogados ou advogadas (é importante ressaltar que há ainda o tratamento desigual por gênero). Em relação ao próprio Judiciário, é perceptível isso quando se analisa os episódios “Silêncio: magistrado dormindo”, em que o citado, por estar dormindo, não se apercebe da deficiência física do advogado que realizava a sustentação oral, exigindo-lhe que permanecesse em pé; “A saia da discórdia”, em que a própria Alexandra é barrada, após requerer autorização do juiz para participar do julgamento utilizando calça comprida – seria necessária uma saia, uma tradição deturpadamente misógina e ultrapassada, que está a critério do juiz para deferir ou não –; e “Algemas”, relatado pela autora como um “chilique” do juiz para uma exigência perpétua de que, para apresentação do preso a ele, era requisito que o mesmo estivesse algemado – de outro modo, não haveria reunião, mesmo que não houvesse periculosidade ou risco de fuga do indivíduo em questão, com o intuito específico de aprofundar a estigmatização daquele já cumpria, devidamente, a pena na posição que lhe cabia, inferiorizando-o, humilhando-o, demonstrando que a intenção não era a incumbida aos juízes, mas decorrente de sua formação elitista.

O desinteresse e a desumanidade também se dão em relação àqueles que, infratores de fato ou não, se submetem ao ofício do julgador. Isso está evidente quando promotores e juízes desconsideram o contexto analisado para agir de forma cruel e injusta em casos claramente injustiçados e, explicitamente, observáveis por esse ponto de vista. É a situação de Rosalinda, cujas condições de saúde e vida foram expostas pelo promotor para justificar um agravamento do acordo firmado, quando, na verdade, se tratava de legítima defesa; da insistência do Ministério Público em recorrer e o Tribunal de Justiça em condenar um adolescente evidentemente condenado pela própria violência policial pelo resto de sua vida, além das consequentes enfermidades que acumulou em virtude de sua condição; o descumprimento de princípios constitucionais, como o de fundamentação das decisões (art. 93/CF) para que o réu tenha ciência da motivação pela qual está sendo preso, além de inserir efeitos da prisionização em pessoas que já haviam se regenerado em sociedade e que, presas sem necessidade, se tornariam cidadãos desempregados e improdutivos.

É também questão de despreparo ou também de ausência de interesse com a população mais carente e vulnerável ao sistema penal a ação de diversos advogados e os próprios erros da burocracia. É gritante a quantidade de casos exemplificados pela autora em que, apenas em virtude do panorama socioeconômico, do desconhecimento e da impossibilidade de contratação de um advogado, é que muitos permaneceram aprisionados indevidamente, muito além do prazo necessário e sentenciado. Pode ser observado, por exemplo, no capítulo em que se relata a prisão, por um ano e oito meses, do indivíduo, apenas pelo fato de a oficial de justiça não ter encontrado o endereço do réu, sendo absolvida pela “dificuldade de encontrar endereços em favela”, com o adendo escancarado da criminalização da pobreza; também aquele em que, alternando entre juízes e subindo de instância, por virtude de conflito negativo, não ocorreu a ninguém desfazer a prisão; além dos múltiplos enredos que são consequência de não haver prazo fixo para a conclusão de processo e soltura do réu, devendo haver requisição ao juiz ou ao Tribunal para apreciação, o que inclui laudos que nunca chegam, advogados ausentes, prisões sem julgamento, e negligência com doentes mentais – tratados como delinquentes ordinários, e não com os cuidados necessários e especializados.

O aparato policial, que também integra o sistema penal considerado como um todo, também tem suas falhas. A tortura, como diz a própria autora, não teve a prática findada com o encerramento do regime ditatorial e a redemocratização do Brasil; ela persiste nas entranhas dos Distritos Policiais, nos interrogatórios, incriminando e gerando falsas confissões, de falsos testemunhos, como no caso de Luciano; com instrumentos, como tacos; e em vinganças de colegas e ex-colegas policiais, seja por motivos justos, seja por causas fúteis, injustificadas.

Em suma, é imperioso afirmar que a leitura de DesCasos é, tal como a leitura do livro de Nilo Batista, sobre o Direito Penal Brasileiro, fundamental para todos que pretendem atuar no sistema penal – e para a sociedade, como um todo, que precisa ter seus olhos abertos para o “inferno na terra” que são os cárceres de hoje. A ciência dogmática do Direito Penal ensina muito, demonstra princípios que valorizam a pessoa e a dignidade humana, os bens jurídicos mais essenciais; veda comportamentos lesivos e que abalam a ordem da sociedade; pretende punir, ressocializando; estabelece formas alternativas desse mesmo castigo. Todavia, é insuficiente: são pessoas como a advogada Alexandra e obras como DesCasos que externalizam, para o mundo, os problemas inerentes à prisão e todo o seu procedimento, manifestando as violações constitucionais e aos Direitos Humanos que são, por conta da condição de “criminosos”, mascarados e ignorados, por profissionais jurídicos, políticos, por toda a população. E como demonstrado por Amaral, são razões históricas – que condicionaram a criação de universidades brasileiras de Direito às tradições portuguesas, europeias –, que tornaram as academias mais reproduções do que verdadeiras “reflexões criativas jurídicas”, com discentes preocupados com as “letras secas” da Lei, não com discernimentos sobre os embates filosóficos, econômicos, sociológicos, sociais que envolvem e se correlacionam aos saberes jurídicos. E é também de ordem pedagógica, de acordo com a cultura jurídica que é provida aos bacharéis, que nascem penalistas passivos e reprodutores dos aparelhos hegemônicos que se instauram em sociedade, através de corpos docentes e estruturas conservadoras de poder, e não espirituosos e críticos da atual configuração; a necessidade de uma instrução nas universidades para que, de fato, estejam interessadas no país e em seus problemas é fundamental para que as questões, tais como apresentadas aqui, de alienações, disparates, desumanidade e horrores sociais sejam extirpados e substituídos pela verdadeira função social do direito.



Referências bibliográficas:
SZAFIR, Alexandra Lebelson. DESCASOS: uma advogada às voltas com o direito dos excluídos. São Paulo: Saraiva, 2010, 1ª ed.
AMARAL, Cláudio do Prado. Razões históricas de um sistema penal cruel. In Boletim IBCCRIM. São Paulo: IBCCRIM, ano 19, n. 218, p. 02-03, jan., 2011. 

Documentário "O Prisioneiro da Grade de Ferro" e as finalidades da pena



O dever-ser ­jurídico apresenta-se mais uma vez como pura expectativa de concretização do arcabouço jurídico-normativo no Brasil. Na análise da relação entre a pena privativa de liberdade e as finalidades da punição no ordenamento jurídico brasileiro, observar-se-á, explicitamente, uma incompatibilidade entre as premissas do legislador e da legislação, especificamente ao que se refere à Lei de Execução Penal (LEP) – Lei Federal nº 7.210/84 –, e a situação concreta dos estabelecimentos penitenciários. 

Destarte, embora previsto em lei que a execução penal tenha como finalidade “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado”, no art. 1º da Lei de Execução Penal, o objetivo permanece como não alcançado, uma vez que a realidade do preso é, visivelmente, distinta e diametralmente oposta ao que se propõe juridicamente. Tal como se inferiria a partir de uma observação – superficial ou profunda – das condições sub-humanas de aprisionamento, e também a partir dos próprios relatos dos reeducandos e funcionários do sistema prisional, há uma “má gestão [...], inabilidade administrativa e técnica.”, como explicita Alvino Augusto de Sá (2007, p. 113), e evidente despreocupação política, jurídica e social com o aprisionado, e com o próprio sistema em si, condenando não apenas a ressocialização, como também o inserindo ainda mais desastrosamente no processo de prisionização, degradando-o. De forma genérica, pode-se afirmar que não existe nenhum elemento positivo que emane da sociedade para o cárcere; pelo contrário, há um antagonismo declarado e um confronto constante, face às relações estabelecidas com aqueles que cometeram delitos e passam, então, a ser marginalizados – em uma proporção maior ainda às circunstâncias que já marginalizavam a maioria deles e os induziram a cometer delitos.

Assim como a maior parte do ordenamento jurídico, as leis pretendem, mas não se efetivam, em decorrência da deficiência de uma cooperação entre os sistemas necessários para uma integração positiva e profícua. Vemos a superpopulação carcerária, a debilidade para implementação efetiva do regime progressivo – com todo o “jeitinho brasileiro” para remendar a inabilidade do Estado no cumprimento de suas propostas jurídicas –, falta de infraestrutura adequada e de preparo profissional dos envolvidos, fora a ausência dos recursos materiais e humanos que atingem grande parte dos serviços públicos nacionais. 

Além disso, a perspectiva sobre o cárcere é ainda mais debilitada com a reiterada demonização de seus “habitantes” e através da veiculação de informações equivocadas, como atualmente somos capazes de apreender quando lemos notícias sobre “indultos” de datas comemorativas – a saidinha.

Esse panorama geral tende a criar as quadrilhas organizadas dentro da prisão. O próprio documentário demonstra que, como consequência da rejeição e da pouca importância da sociedade para com os apenados, a organização desses “partidos” se consolidou como fulcral para que estes recebessem a atenção necessária, e suas condições analisadas de forma mais humana, de modo que o apoio pode ser considerado elevado entre os encarcerados, desafiando, então, a autoridade do governo e problematizando a pena imputada.

Desse modo, a crítica sobre a pena privativa de liberdade com a pressuposta finalidade de eficácia na ressocialização do indivíduo e, por conseguinte, prevenção do cometimento de novos delitos, é constante, visto que, embora seu potencial frequentemente não alcance os efeitos desejados – mas contrários, advertidos pela criminologia crítica na dificuldade de reinserção social profissional, familiar e comunitária. A regressão, infantilização, perda de capacidade psíquica, dependência social, pobreza intelectual, dificuldade de estabelecer relacionamentos incluem vários dos efeitos, que estão diametralmente opostos à concepção da LEP; embora o Código Penal defina que à pena cabe a retribuição e prevenção, parece que apenas o primeiro vem sendo aplicado intensa e reiteradamente, enquanto ao segundo cabe a inexistência, e/ou a substituição por “provocação” de delitos no futuro.

Portanto, há uma verdadeira necessidade de reavaliação e reformulação da política criminal e do sistema prisional como um todo. As deficiências são tão visíveis quanto uma fratura exposta – ou qualquer uma das muitas doenças que acometem aos presos do Carandiru, por exemplo, sem tratamentos e com perspectiva de piora e sequelas permanentes –; entretanto, podem e devem ser corrigidas, tanto pela sociedade, quanto pelo Estado. A primeira deve analisar o cárcere como uma parte de si, e não alheia, promovendo a reintegração social do preso com uma aproximação entre ambos, para que se reconheçam num mesmo processo, atenuando os efeitos da prisionização. O Estado deve agir com maior interesse em suas políticas para atender às necessidades do encarceramento e tornar os parâmetros definidos juridicamente pela Lei de Execução Penal em algo sólido, concreto, palpável, de modo que os indivíduos não sejam reincidentes e tornem às penitenciárias, promovendo, também, a relação sociedade-preso.

Documentário "Do Lado de Fora" e o princípio da pessoalidade



O princípio da pessoalidade (ou personalidade) da pena, previsto no art. 5º, XLV, da Constituição Federal, dispõe que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”. Destarte, compreende-se que a responsabilidade [penal] é (ou deveria ser) individual, de modo que a culpabilidade é o fator que determina a responsabilização criminal, e nada além dela; ninguém tem pena imposta por fato causado por outrem, por fato alheio. Todavia, o dispositivo permite a reparação (que não é sanção penal) do dano por terceiros no caso de heranças, mas limitando-se ao patrimônio objeto de sucessão, na esfera civil.

É correto, portanto, afirmar que há a observação desse dispositivo no ordenamento brasileiro. Genericamente, resta de modo explícito que, em contraposição ao direito pré-beccariano, no estado de polícia, a sanção estatal não se estende para além daquele que infringiu o direito, mesmo que haja vínculo parental em relação ao condenado – situação observada, por exemplo,  no julgamento de Tiradentes, cuja extensão penal também abrangia a família do mesmo, declarando-os infames e o confisco dos bens –; desse modo, formal e juridicamente, não há, hodiernamente, de forma direta, punição aos descendentes, aos companheiros, e nem pode haver por determinação judicial – uma das conquistas mais expressivas para a dignidade e justiça, “a sanção penal não pode ser aplicada ou executada contra quem não seja o autor ou partícipe do fato punível.” (Dotti, 2001, p. 65), em consonância com a teoria da equivalência das condições (conditio sine qua non). Essa posição do Direito é a mais lógica, principalmente através da análise da perspectiva de que “a pena é um medida de caráter estritamente pessoal, em virtude de consistir numa ingerência ressocializadora sobre o apenado”, segundo Zaffaroni e Pierangeli.

Além do princípio da pessoalidade, que rege a seara penal e não há exceções na legislação em relação ao dispositivo, é possível citar uma manifestação mais clara (e/ou tentativa) de personalização, através do art. 50, §2º, do Código Penal, em que se trata sobre a pena de multa, prevendo que o “desconto não deve incidir sobre os recursos indispensáveis ao sustento do condenado e de sua família”, de base principiológica. E embora nem sempre haja previsão explícita, sempre está presente nas relações penais. Para compensar esse problema, há até mesmo o auxílio-reclusão, benefício para os dependentes do segurado do INSS, de modo a permitir que haja a subsistência da família para se manter sem o condenado. A possibilidade de visita íntima e amamentação de bebês também são positivadas pelo direito brasileiro, de modo a que os respectivos companheiros e as crianças não fiquem desamparados em suas respectivas relações com os indivíduos condenados, reiterando o caráter da pessoalidade da pena em certo aspecto, embora a última circunstância também seja uma questão controvertida e delicada quando se trata desse assunto.

Em contrapartida, o art. 50, do Código Penal, em si, pode ser observado sob perspectiva adversa, pois o instituto da pena de multa tem sido controverso na doutrina, no que concerne à conformidade e aos limites em relação à norma constitucional que embasa esse debate. A previsão em seu § 1º é de que “a cobrança da multa pode efetuar-se mediante desconto no vencimento ou salário do condenado [...]”, o que enseja a discussão de que, mesmo com a vigência do parágrafo seguinte, determinando certos limites para a aplicação, ainda haveria, por conseguinte de afetar a renda do condenado, interferência na vida de terceiros – configurando uma violação constitucional. O auxílio-reclusão, embora seja positivo, é claramente muito estrito e específico, pois está limitado a uma quantidade específica e apenas aos segurados do INSS por, pelo menos, 18 anos.

No que se refere ao que não é observado na ordem jurídica brasileira sobre a personalização das penas, além da característica econômica supracitada, há os aspectos sociais, que são predominantes no direito penal: a doutrina indica que a realidade da penal afeta, socialmente, terceiros não culpados, principalmente os seus familiares, mesmo que, juridicamente, essa situação tente ser contornada – a Lei de Execução Penal (7.210/84), prevê que “art. 23 - Incumbe ao serviço de assistência social: [...] VII - orientar e amparar, quando necessário, a família do preso, do internado e da vítima.”. É entendimento de que, apesar dessa atribuição, não há a orientação devida para os parentes do condenado por sanção penal.

Tal como se pode observar, tanto a doutrina quanto o documentário demonstram que há profunda estigmatização para a família do condenado, principalmente na perspectiva das mães e mulheres. Além disso, a própria tentativa de interação com os presos – a visita –, que também visa a ressocialização, está imbuída de um vasto número de penalizações para os familiares, para os visitantes em geral, o que demonstra um rompimento da base principiológica, como: a burocracia institucionalizada de modo extensamente negativo, impedindo que familiares distantes, normalmente dos interiores dos respectivos Estados, possam visitá-los – condição também atrelada à falta de informação e/ou organização dos próprios presídios, aliada ainda ao panorama socioeconômico; a revista vexatória, revista íntima que é realizada em mulheres – idosas, adultas ou crianças – para impedir a entrada de drogas e/ou outros itens vetados, devendo ficar nuas, saltarem ou agacharem, e que atenta à dignidade humana e a intimidade, sendo então proibidos – e, em determinados casos, ainda assim praticados – por alguns dispositivos, sem norma que o permita; a quantidade enorme de filas as quais se submetem os visitantes; os “acampamentos” do lado externo prisional, de mulheres e crianças, à espera do horário de entrada, durante uma noite inteira, expondo-se ao clima, aos perigos urbanos e a diversos animais – baratas, cobras, cachorros, gatos –, deitados no chão e sem infraestrutura básica para alimentação e higiene; a humilhação da exposição das circunstâncias perante as quais se realizam as visitas íntimas, fora o tempo reduzido; a posição inferior que esposas e mães as quais são reduzidas na sociedade, pela imagem do companheiro ou filho condenado, sendo, então, parentes de “bandido” – preconceito, discriminação com mulheres que não estão relacionadas a qualquer crime; a condição psicológica afetada em decorrência da imagem atribuída pela sociedade a elas, de sofrimento, vergonha e tristeza contínuos. Em virtude desses e outros dados, é possível notar que, embora no plano do dever-ser, no plano jurídico, não haja uma transcendência da pena da pessoa do culpado, socialmente essa personalidade da punição não é observada no ordenamento brasileiro.

Documentário "Leite e Ferro" e os princípios constitucionais



O PLS – Projeto de Lei do Senado 75/2012 pode ser considerado um avanço relevante para a aplicação da pena privativa de liberdade em consonância com as finalidades da mesma, segundo o ordenamento jurídico. A proposta, que tem, como embasamento da própria proponente – senadora Maria do Carmo Alves, DEM-SE –, objetivo de impedir consequências tanto à parturiente quanto ao nascituro, como a antecipação do parto, está em harmonia com princípios constitucionais de proteção à violência arbitrária e asseguração da dignidade, no que tange à Constituição ter definido, em seu art. 6º, como “direitos sociais [...] a saúde, [...] a proteção à maternidade e à infância” em integralidade aos seus cidadãos, sem descaracterizar indivíduos sob quaisquer circunstâncias, além de ser uma situação também já recomendada pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Segundo o documentário, a utilização de algemas é um assunto muito volúvel quanto à prática dentro do sistema carcerário. Revelando-se tão cruel quanto a simples cogitação da ideia de algemar uma mulher durante o seu trabalho de parto – em condições que, creia-se, não sejam confortáveis e/ou bem preparadas –, as encarceradas demonstraram que, não apenas nesse caso específico do parto quanto também durante o banho, alguns agentes demandavam a utilização da ferramenta pelas presas, visando-se, o que se suporia ser, uma segurança maior para impedir a fuga das detentas – argumento relatado por algumas delas. Ademais, a questão torna-se ainda mais complexa quando analisado o fato de que não há um consenso entre esses funcionários, pois, variando de caso a caso, as algemas podem ou não ser impostas em seu uso.

À luz dos princípios constitucionais que regem a execução penal no ordenamento jurídico brasileiro, ponderações importantes podem ser realizadas, visto que a alteração normativa traz consigo valores muito humanitários e caracterizadores de uma pena mais socialmente justa e proporcional. Tal como já fora asseverado, a dignidade das mulheres encarceradas (e de qualquer cidadão) é um princípio constitucional que está intrínseco ao Estado Democrático e Social de Direito que se pretende possuir no país, de tal modo que, em conformidade com o princípio da humanidade das penas, embora o aprisionamento signifique uma punição à conduta lesiva, independente da gravidade do delito praticado, há um parâmetro referencial que não pode ultrapassar determinado limite e extrapolar de modo a afetar essa dignidade – o que se pode analisar e apreender de forma ainda mais intensiva quando se compreende que, durante o trabalho de parto, a mulher já está, pela própria condição natural, vivenciando dores extenuantes, dilatações e contrações vaginais. O Estado é responsável, e esse princípio é considerado o maior entrave legal, de uma infraestrutura e de recursos durante o aprisionamento que sejam capazes de impedir a degradação e a dessocialização dos condenados, assegurando, portanto, o direito constitucional de “respeito à integridade física e moral” (art. 5º, XLIX). Estabelecer esse veto quanto à utilização de algemas no decorrer do trabalho de parto segue, em certa medida, o princípio da pessoalidade da pena, pois, desse modo, prevenindo aqueles riscos já supracitados, as decorrências do encarceramento não incidem, de modo negativo, sobre aquele – a criança – que não foi condenado, não ultrapassando a pessoa do condenado, não punindo outrem por uma circunstância que não pode ser imputável a ele. Assim também podemos afirmar quanto a certa individualização da pena, adaptando o caso específico da parturiente acerca da utilização de algemas sob essas condições.